Frei Betto responsabiliza Igreja por ter introduzido "vírus oportunista" na campanha
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FABIO VICTOR
DE SÃO PAULO
Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, 66, afirma que a forma como são abordados religião e aborto nesta campanha está "plantando no Brasil as sementes de um possível fundamentalismo religioso".
O frade dominicano responsabiliza a própria Igreja Católica por introduzir um "vírus oportunista" na disputa eleitoral.
E define como "oportunistas desesperados" os bispos da Regional Sul 1 da CNBB (São Paulo) que assinaram no fim de agosto uma nota, depois tornada panfleto, recomendando aos fieis não votar em candidatos do PT.
Em entrevista à Folha, o religioso analisa que os temas ganharam espaço na agenda porque "lidam com o emocional do brasileiro". "Na América Latina, a porta da razão é o coração, e a chave do coração é a religião. A religião tem um peso muito grande na concepção de mundo, de vida, de pessoa, que a população elabora."
Amigo do presidente Lula, de quem foi assessor entre 2003 e 2004 e a quem depois manteve apoio crítico, e eleitor de Dilma Rousseff, Frei Betto defende que as políticas sociais do atual governo evitaram milhões de mortes de crianças e, por isso, discuti-las é mais importante do que debater o aborto.
Folha - Desde que deixou o cargo de assessor de Lula, o sr. manteve um apoio crítico ao governo, um certo distanciamento. A pauta religiosa --ou a forma como ela foi introduzida na campanha-- lhe reaproximou do governo e do PT?
Frei Betto - Eu nunca me distanciei. Sempre apoiei o governo, embora fazendo críticas. O governo Lula é o melhor da nossa história republicana, mas não tão ideal quanto eu gostaria, porque não promoveu, por exemplo, nenhuma reforma na estrutura social brasileira, principalmente a reforma agrária.
Mas nunca deixei de dar o meu apoio, embora tenha escrito dois livros de análise do governo, mostrando os lados positivos e as críticas que tenho, que foram "A mosca azul" e "O calendário do poder", ambos publicados pela Rocco. Desde o início do processo eleitoral, embora seja amigo e admire muito a Marina Silva, no início até pensei que Dilma venceria com facilidade e que poderia apoiá-la [Marina], mas depois decidi apoiar a candidata do PT.
Mas você entrou com mais força na campanha por conta da pauta religiosa, sem a qual talvez não tivesse entrado tanto?
Eu teria entrado de qualquer maneira dando meu apoio, dentro das minhas limitações. Agora essa pauta me constrange duplamente, como cidadão e como religioso. Porque numa campanha eleitoral, penso que o mais importante é discutir o projeto Brasil. Mas como entrou o que considero um vírus oportunista, o tema do aborto e o tema religioso, lamentavelmente as as duas campanhas tiveram, sobretudo agora no segundo turno, que ser desviadas para essas questões, que são bastante pontuais. Não são questões que dizem respeito ao projeto Brasil de futuro. Ou, em outras palavras: mais do que se posicionar agora na questão do aborto é se posicionar em relação às políticas sociais que evitam a morte de milhões de crianças. Nenhuma mulher, nenhuma, mesmo aquela que aprova a total liberalização do direito ao aborto, é feliz por fazer um aborto.
Agora o que uma parcela conservadora da Igreja se esquece é que políticas sociais evitam milhões de abortos. Porque as mulheres, quando fazem, é por insegurança, frente a um futuro incerto, de miséria, de seus filhos. Esses 7,5 anos do governo Lula certamente permitiram que milhares de mulheres que teriam pensado em aborto assumissem a gravidez. Tiveram seus filhos porque se sentem amparadas por uma certa distribuição de renda que efetivamente ocorreu no governo Lula, tirando milhões de pessoas da miséria.
Por que aborto, crença e religião entraram tão fortemente na pauta da campanha?
Porque eles lidam com o emocional do brasileiro. Como o latino-americano em geral, a primeira visão de mundo que o brasileiro tem é de conotação religiosa. Sempre digo que, na América Latina, a porta da razão é o coração, e a chave do coração é a religião. A religião tem um peso muito grande na concepção de mundo, de vida, de pessoa, que a população elabora.
Mas não foi a população que levou esse tema [à campanha], foram alguns oportunistas que, desesperados e querendo desvirtuar a campanha eleitoral, introduziram esses temas como se eles fossem fundamentais.
O próprio aborto é decorrência, na maior parte, das próprias condições sociais de uma parcela considerável da população.
Quem são esses oportunistas?
Primeiro os três bispos que assinaram aquela nota contra a Dilma, diga-se de passagem à revelia da CNBB. Realmente eles se puseram no palanque, sinalizando diretamente uma candidata com acusações que considero infundadas, injustificadas e falsas.
A Dilma, que já defendeu a descriminalização do aborto, recuou em relação ao tema.
Respeito a posição dela. Agora eu, pessoalmente, como frade, como religioso, como católico, sou a favor da descriminalização em determinados casos. Pode colocar aí com todas as letras. Porque conheço experiências em outros países, como a França, em que a descriminalização evitou milhões de abortos. Mulheres foram convencidas a ter o filho dentro de gravidez indesejada. Então todas as estatísticas comprovam que a descriminalização favorece mais a vida do que a descriminalização. É importante que se diga isso, na minha boca.
Na Itália, que é o país do Vaticano, predominantemente católico, foi aprovada a descriminalização.
O sr. acha que o recuo da Dilma é preço eleitoral a pagar?
Respeito a posição dos candidatos, tanto da Dilma quanto do Serra, sobre essas questões. Não vou me arvorar em juiz de ninguém. Como disse, acho que esse é um tema secundário no processo eleitoral e no projeto Brasil.
Pelo que se supõe, já que não há muita clareza nos candidatos, nem Dilma nem Serra são favoráveis ao aborto em si, mas ambos parecem abertos a discutir sua descriminalização. Por que é tão difícil para ambos debater esse tema com clareza e honestidade?
Porque é um tema que os surpreende. Não é um tema fundamental numa campanha presidencial. É um vírus oportunista, numa campanha em que você tem que discutir a infraestutura do país, os programas sociais, a questão energética, a preservação ambiental. Entendo que eles se sintam constrangidos a ter que se calar diante dos temas importantes para a nação brasileira e entrar num viés que infelizmente está plantando no Brasil as sementes de um possível fundamentalismo religioso.
Como o sr. vê a participação direta de bispos, padres e pastores na campanha, pregando contra ou a favor de um ou outro candidato?
Eu defendo o direito de que qualquer cidadão brasileiro, seja bispo, seja até o papa, tenha a sua posição e a manifeste. O que considero um abuso é, em nome de uma instituição como a Igreja, como a CNBB, alguém se posicionar tentando direcionar o eleitorado. Eu, por exemplo, posso, como Frei Betto, manifestar a minha preferência eleitoral. Mas não posso, como a Ordem Dominicana à qual eu pertenço, dizer uma palavra sobre isso. Considero um abuso.
E a participação de uma diocese da CNBB na produção de panfletos recomendando fieis a não votarem na Dilma?
É uma posição ultramontana, abusiva, de tentar controlar a consciência dos fieis através de mentiras, de ilações injustificadas.
O sr. acredita, como aponta o PT, que o PSDB está por trás da produção dos panfletos?
Não, não posso me posicionar. Só me posiciono naquilo em que tenho provas e evidências. Prefiro não falar sobre isso.
Quais as diferenças de tratamento do tema aborto nas diferentes religiões?
Ih, meu caro, isso é muito complexo. Agora, na rua... Eu estou na rua, indo para a PUC [para ato de apoio a Dilma, na última terça à noite]. Para entrar nesse detalhe... Eu escrevi um artigo até para a Folha, anos atrás, sobre a questão do aborto. É muito delicado analisar as diferenças. Há nuances. Mesmo dentro da Igreja Católica há diferentes posições sobre quando é que o feto realmente se transforma num ser vivo. Não é uma questão fechada na Igreja. Ainda não há, nem do ponto de vista do papa, uma questão dizendo: o feto é um ser vivo a partir de tal data. É uma questão em discussão, teologicamente inclusive. São Tomás de Aquino dizia que 40 dias depois de engravidar. Isso aí depende muito, é uma questão em aberto.
Em artigo recente na Folha, o sr. disse que conhecia Dilma e que ela é "pessoa de fé cristã, formada na Igreja Católica". O que diria sobre a formação e a religiosidade de Serra?
Eu sou amigo do Serra, de muitos anos, desde a época do movimento estudantil. Nunca soube das suas opções religiosas. Da Dilma sim, porque fui vizinho dela na infância [em Belo Horizonte], estivemos juntos no mesmo cárcere aqui em São Paulo, onde ela participou de celebrações, e também no governo. Não posso de maneira alguma me posicionar em relação ao Serra. Respeito a religiosidade dele.
Se você me perguntasse antes da campanha sobre a posição religiosa do Serra, eu diria: não sei. Mas considero uma pessoa muito sensata, que respeita crenças religiosas, a tolerância religiosa, a liberdade religiosa. Nesse ponto os dois candidatos coincidem.
O que achou do material de campanha de Serra que destaca a frase "Jesus é a verdade e a vida" junto a uma foto do candidato?
Não cheguei a ver e duvido que seja material de campanha dele. Como bom mineiro, fico com pé atrás. Será que é material de campanha, será que é apócrifo?... Agora mesmo estão distribuindo na internet um texto, que me enviou hoje o senador [Eduardo] Suplicy, [intitulado] "13 razões para não votar em Dilma", com a logomarca da Folha, de um artigo que eu teria publicado na Folha, assinado por mim. Não dá para dizer que [o santinho] é da campanha dele.
Mas tem foto dele, o número dele [tem inclusive o CNPJ da coligação]...
Bem, espero que a campanha, o comitê dele desminta isso e, se não desmentir, quem cala, consente.
No mesmo artigo o sr. diz que torturadores praticavam "ateísmo militante". O sr. não respeita quem não crê em Deus?
Meu caro, eu tenho inúmeros amigos ateus. Nenhum deles tirou do contexto essa frase. Com essa pergunta você me permite aclarar uma coisa muito importante: que a pessoa professe ateísmo, tem todo o meu apoio, é um direito dentro de um mundo secularizado, de plena liberdade religiosa.
Agora, a minha concepção de Deus é que Deus se manifesta no ser humano. Então toda vez que alguém viola o ser humano, violenta, oprime, está realizando o ateísmo militante. Ateus que reivindicam o fim dos crucifixos em lugares públicos, o nome de Deus na Constituição --isso não é ateísmo militante, isso é laicismo, que eu apoio. O ateísmo militante para mim é profanar o templo vivo de Deus, que é o ser humano.
Tiraram do contexto, não entenderam...
É que houve queixas de ateus em relação àquele trecho do seu artigo, tido como discriminatório...
Podem ter se sentido ofendidos por não terem percebido isso. Para mim o ateísmo militante é você negar Deus lá onde, na concepção cristã, ele se manifesta, que é no ser humano. Você professar o ateísmo é um direito que eu defendo ardorosamente. Agora, você não pode é chutar a santa, como fez aquele pastor na Record. Ou seja, eu posso ser ateu, como eu sou cristão, mas eu não digo que a fé do muçulmano é um embuste ou que a fé do espírita é uma fantasia. Isso é um desrespeito.
O sr. relatou no artigo que encontrou Dilma no presídio Tiradentes [em São Paulo] e que lá fizeram orações. Como foram esses encontros?
Ela estava presa na ala feminina, eu na ala masculina e, como religioso, eu tinha direito de, aos domingos, passar para a ala feminina para fazer celebrações. E ela participava. O diretor do presídio autorizava isso.
O sr. já comparou o Bolsa Família a uma "esmola permanente"...
[interrompendo] Não, eu não usei essa expressão. Eu sempre falei que o Bolsa Família é um programa assistencialista e o Fome Zero era um programa emancipatório. Nunca chamei de esmola não. Se saiu isso aí, puseram na minha boca.
Deixa eu buscar aqui o contexto exato...
Quero ver o contexto. Dito assim como você falou agora eu não falei isso não.
Vou achar aqui o texto, espera aí.
Bem, mas não importa o que eu disse. Eu te digo agora o seguinte: o Bolsa Família é um programa compensatório e o Fome Zero era um programa emancipatório.
* Você falou o seguinte [numa entrevista à Folha em 2007]: "Até hoje o Bolsa Família não tem porta de saída. O governo inteiro sabe qual é, mas não tem coragem: é a reforma agrária, a única maneira de 11 milhões de famílias passarem a produzir a própria renda e ficarem independentes, emancipadas do poder público. Você não pode fazer política social para manter as pessoas sob uma esmola permanente. Nem por isso considero o Bolsa Família negativo, devo dizer isso. O problema é que não pode se perenizar".*
Ótimo que você pegou o texto, muito bem, é isso mesmo. Veja bem, não vamos tirar de contexto não.
O que o sr. pensa do Bolsa Família hoje?
Isso que eu te falei: é um programa compensatório. Eu gostaria que voltasse o Fome Zero, que tem um caráter emancipatório, tinha porta de saída para as famílias. E o Bolsa Família, embora seja positivo, até hoje não encontrou a porta de saída, o que eu lamento.
O sr. continua a ser um defensor inconteste do regime cubano? Ainda é amigo de Fidel?
Não, veja bem. A sua afirmação... Não põe na minha boca o que você acabou de falar. Eu sou solidário à Revolução Cubana. Eu faço um trabalho em Cuba há muitos anos, de reaproximação da Igreja e do Estado. Estou muito agradecido a Deus e feliz por poder ajudar esse processo, que resultou recentemente na liberação de vários presos políticos.
O sr. participou diretamente desse processo, dessa última libertação?
Indiretamente sim. Mas não é ainda o momento de eu entrar em detalhes.
O sr. acha que essa tendência de abertura do regime é inexorável?
Sim, claro, tem que haver mudanças. Cuba está preocupada em se adaptar. Mas nada disso indica a volta ao capitalismo.
Sobre o desrespeito aos direitos humanos em Cuba, ainda há presos políticos...
Meu caro, ninguém desrespeita mais os direitos humanos no mundo do que os Estados Unidos. E fala-se pouco, lamentavelmente. Basta ver o que os Estados Unidos fazem em Guantánamo.
Cuba ocupa o 51º no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, que é insuspeito. O Brasil, o 75º.
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