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segunda-feira, 14 de março de 2011

Cavoucando o tempo através dos tubos


Por Carlos T. Moura

Aí é que está: é impossível resistir à magia cibernética. Inda mais facilitado pelas trilhas nos escaninhos do Youtube.

Dei de, numa noite deprê, querer ouvir músicas da minha infância e juventude perdidas. Poderia ter purgado-a com três ou quatro doses de Ingmar Bergman ou de Fellini. Preferi no entanto me entregar ao tempo em que a breguice dominava – e não domina ainda? – sob uma farta diversificação. Era a era do rockabilly, da valsa, do xaxado, das trilhas de filmes, da guarânia, do maxixe, da marchinha, do bolero, da balada, do sambinha, do sambão, do twist, das gravações instrumentais disputando pau a pau com o poder das gargantas.

Fiz uma pinçada lá pelo final dos 50, início dos 60, reencontrando meu passado no início da puberdade. E descobrindo pepitas. Mais que as músicas – todas minhas velhas amigas – revi o que a vida fez com elas e comigo.

Começo com as primeiras dez mais, que poderão se transformar em vinte, cinquenta ou cento e oitenta, se para tanto não me faltar empenho e sorte.

Mais importante que as informações, obtidas pela ajuda da memória no éter das Rádios Cataguases, Tamoio, Nacional e JB, são as clicadas que vocês terão que dar nos links do Youtube.

Fica aqui também meu tributo às extensões McLuhan da minha memória: a Wikipédia, o Google, a Enciclopédia Cravo Albim, o AllmusicGuide... Sem elas eu seria uma Maria Ninguém. Do Carlos Lyra, gravada por Brigitte Bardot!






Tito Madi, um classico
cool dos `60


The Platters/Chove lá fora

Eu sempre soube que a música brasileira frequentava os lares americanos muito antes que a Bossa Nova tomasse conta do Carnegie Hall, do Frank Sinatra e dos elevadores. Muito e muito por Carmen Miranda, que não se negou a ensiná-los o que essa república da banana tinha: Ary, Caymmi, Zequinha de Abreu. “Mamãe eu quero” já fora satirizada até pelo Mickey Rooney, travestido de baiana em filme da Metro. E o “Jura”, do Sinhô, estalou nas paradas pelos dedos do Les Paul, o inventor da guitarra elétrica.

Nunca poderia supor é que o The Platters – sim, aqueles elegantes mulatos do “Only you” – tivessem gravado Tito Madi no auge deste e deles. Com a chuva lá fora virando exatamente uma raining outside.

Clicar: The Platters in "It´s raining outside"


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Marino Pinto, autor de "A estrela do mar" (Um pequenino grão de areia), era um bamba sobre qual pouco ainda se fala.


Elza Laranjeira/Aula de matemática

Havia um vasto e desconhecido Tom Jobim antes que a saudade chegasse aos braços do Orfeu Negro. E havia uma intérprete feminina à altura, antes que Sylvinha Telles assumisse o trono e, morrendo cedo, entregasse o cetro a Nara. Que tirou da cadeira os maneirismos e os trejeitos e assentou a voz feminina de acordo com a cartilha única e irrevogável de João Gilberto.

Era Elza Laranjeira, que cantava com a ênfase nos erres, típico da época, quando as rainhas do rádio tinham que demonstrar que passaram pelo consultório do foniatra Pedro Bloch antes de encarar um microfone. Não fosse isso, poderia ter entrado na posteridade. A melodia de Jobim não é lá, mas a letra do Marino Pinto era a “mudernidade” pura de um Newton Mendonça, que desafinou na sisudez da época. Não tivesse sido ele, Marino, o autor do pequenino grão de areia e do bota o retrato do velho outra vez.

Clicar: Elza Laranjeira em Aula de matemática


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Adelino Moreira: o dono das paradas na virada dos `50s para os `60s, com a dor de cotovelo como mote principal.



Carlos Nobre/Ciclone

Enquanto a Bossa Nova falava de rolleiflex, de peixinhos a nadar e da influência do jazz, o português (naturalizado brasileiro) Adelino Moreira dominava todas as paradas botando a dor de cotovelo nos cornos(!) da lua.

Seus títulos costumavam ter só uma palavra, não raro dramática ou bombástica: “Doidivana”, “Fantoche”, “Negue”, “Argumento”, “Borrasca”, “Êxtase”, “Solidão”, “Devolvi”, “Escultura”. Inclui-se no rol esse “Ciclone”, gravado por Carlos Nobre.

Nobre era um Nélson Gonçalves pobre. Lançou algumas composições de Adelino quando este andou brigado com o “Metralha”, que veio a gravar algumas delas anos depois. A voz de Carlos era igualzinha à de Nelson – não fosse Nelson um cantor bem melhor.

O vídeo do Youtube é imperdível. Quem o postou tem um gosto que vai do ridículo ao ridículo, exceto pela estranha enfiada da fotografia de Baudelaire no pedaço que fala “traguei minha mágoa no peito sem rancor”. Seria o ópio, o haxixe (“traguei”)? Se alguém souber o que ele quis dizer, me avise.

Clicar: Carlos Nobre em "Ciclone"


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Joselito em 2008.

Como disse o filósofo Manuel Joaquim - o tempo escangalha com a gente.


Joselito/ Donde estará mi vida

Era impressionante a força que levava o menino espanhol Joselito a cantar. “Donde estará mi vida” foi um tremendo hit no Brasil em 1957 e, escutando-a agora, revela algo do profundo agudo árabe dos cantos flamencos.

Procurando pelo garoto, quase da minha idade hoje anciã, o que descubro? Joselito tornou-se mercenário na África e foi preso por tráfico de drogas em Angola, em 1990. Cumpriu pena na Espanha, voltou a cantar e chegou até a participar, recentemente, de um reality show, fosso natural onde caem os “prés” e “pós” decadentes. As crianças prodígios não costumam ter uma vida normal depois que crescem.

Clicar: Donde estará mi vida por Joselito


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Brenda Lee já deve ter cantado "Jambalaya" um milhão de vezes. Mas não perdeu o sorriso.


Brenda Lee/Dynamite

A voz rascante que algum deus deu a Brenda Lee - diz a lenda que ela tinha só 10 anos quando gravou esse "Dynamite"- era dilacerante. Eu gostava (e ainda gosto) dela pra cacete. Poderia ter sido uma boa cantora de jazz ou de blues – chegou até a gravar alguns standards. Preferiu viver como a queridinha do rock-balada ou saracotear com a cajun music.

Mas nem só de “Jambalayas” viveu. Tinha um timbre semelhante ao de Kay Starr (cantora de jazz da época) e, de longe, ao registro alto de Dinah Washington.

Clicar: Brenda Lee em "Dynamite"

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Sérgio Murilo era meio parecido com o Guga, o tenista. Cantava numa época em que se fazia versões de canções italianas a granel no Brasil, do "Banho de lua" a "Marcianita".


Sérgio Murilo/Marcianita

Sérgio Murilo poderia ter sido um outro Roberto Carlos, pois são da mesma época. Não chegou a ser uma estrela de brilho na Jovem Guarda, mas seu “ Marcianita”, versão de uma canção italiana, é um pitéu. Toda a deliciosa ingenuidade do período está nela. A gravação é extremamente cool, incluindo o vocal. Tem toques jazzísticos muito próximos às vinhetas que Nino Rota fazia na época para "A doce vida", "Oito e meio" e "Rocco e seus irmãos". O colchão instrumental é de primeira, com direito também a um piano e a um sax na medida. Quem identificar os músicos, cartas para a redação.

Em tempo: Caetano regravou-a poucos anos depois, num show na boate Sucata, com os Mutantes. Mudou a letra para atualizar as datas mas, mesmo sendo um cantor de primeiríssima, não reeditou a delicadeza sincopada do original de Sérgio.

Clicar: Sérgio Murilo em Marcianita


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A outra Dalva, estrela de voz chorosa que vendeu milhares de discos cantando "ninguém sabe a dor que eu sinto/dentro de mim". Era uma cafonice suave, leve, quase de acalanto. O brega de hoje é estereofonicamente intolerável.



Dalva de Andrade/Serenata suburbana

Onde andará Dalva de Andrade? A outra estrela Dalva, de voz suave, com raro domínio do falsete, como a xará Oliveira. “Serenata suburbana” foi um estouro em 1960 e, bamba no frevo, o pernambucano Capiba provou ser capaz também de tomar nas rédeas uma guarânia paraguaia à la carte, banhada por doce melancolia.

Clicar: Dalva de Andrade e Serenata suburbana

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François de Roubaix foi uma perda muito precoce para a música do cinema francês.

Além de talentoso pra caramba, era tão galã quantos os astros dos filmes de suas trilhas.





Alain Delon/Laetitia

O compositor François de Roubaix foi um gigante das trilhas sonoras francesas dos anos sessenta. Era de uma versatilidade rara e eu não tenho medo de dizer que tinha um senso melódico tão marcante como Rota ou Morricone, os dois deuses italianos da soundtrack. Transitava do jazz à música eletrônica, não sem antes dar uns beliscos na Bossa Nova. Era um prodígio, com apenas 25 anos.

Morreu novo demais, aos 35, num acidente nas Ilhas Canárias. Deixou uma obra marcante em tamanho e qualidade.

"Letícia" fez parte da trilha de “Os aventureiros”, com Lino Ventura, Joanna Shimkus e Alain Delon. É Delon que canta, quem sabe na única vez em sua vida de ator. Ou melhor, sussurra. Com um registro vocal tão bonito quanto os olhos que destruiu os corações(e outras partes) das donzelas sessentistas.

O filme é um cult de Robert Enrico, raro de se encontrar em vídeo e ausente dos canais alternativos da TV. A trilha tinha também Christiane Legrand ( a soprano solista dos Swingle Singers), irmã do Michel, dando um show no solo bachiano de "Funeral submarino".

Clicar: Alain Delon em Letícia


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Sônia Mamede era uma rainha na era das vedetes.

Fez cinema(chanchadas), teatro de revista e apareceu por muito tempo na televisão.

Era talentosa e muito....muito mesmo.....gostosa.


Só de curvas tinha pra mais de três carretéis


Sônia Mamede e Evaldo Gouveia/Maria Chiquinha

Sônia Mamede e Evaldo Gouveia pintaram os canecos nas paradas de 1961 com essa maliciosa toadinha com sabor mineiro/sulista - de Geysa Bôscoli e Guilherme Figueiredo.

Mamede era uma delícia – nas comédias e nas curvas. Evaldo foi o compositor que conhecemos e, de lambujem, o criador do Trio Nagô.

Geysa Bôscoli não era mulher, era homem. Sobrinho da Chiquinha Gonzaga e tio do Ronaldo. Figueiredo era o próprio: o dramaturgo que ficou mais conhecido como o irmão do João Batista, o general que posava de sunga preta e que governou o Brasil no peito e na marra. Na época em que cinco estrelas na farda tinham o peso das milhares de urnas. Mesmo que quem as ostentasse fosse uma besta arreiada e calçada com ferraduras como ele.

Clicar: Mamede e Evaldo em Maria Chiquinha

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O twist veio para desbancar o rock, mas não desbancou.


Tinha a seu favor ser muito mais fácil de dançar - o rock era acrobacia pura.

No pouco que durou, Chubby Checker reinou.

Depois vieram o hully-gully e o iê-iê-iê. E, com o último e pelos Beatles, o rock nunca mais foi o mesmo.



Chubby Checker/Hava Nagila

Chubby Checker incendiava os ouvidos com um ritmo até hoje alucinante - o twist. Curioso como esta canção, saída das tradições das bodas judaicas, se transformou num frenesi de fazer sacudir as cadeiras e mexer as pernas da moçada que adotou o twist como uma extensão natural do rock´n´roll. Cantada parte em iídiche, teve quase igual sucesso ao de uma outra com os mesmos antecedentes étnicos hebreus: “Bei mir bist du schoen”. Que, popularizada pelas Andrews Sisters, virou standard de jazz, inclusive com a Ella Fitzgerald dos primeiros anos.

Clicar: Chubby Checker em Hava Nagila

3 comentários:

  1. Moura, seu danado, que fantástico! Joselito foi uma grande paixão da minha infância! Nem sabia que ainda existia! Alain Delon cantando "Laetitia", então, que preciosidade! Difícil falar o que cada uma dessas músicas significou pra minha vida...
    (até porque, seria extenso demais o meu comentário). Resumo da ópera: obrigada pela sua noite deprê, que nos proporcionou esses momentos de "saudade não tem idade". A D O R E I !!

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  2. Parabéns, Moura. Confesso que até me emocionei! Joselito realmente foi demais! Preciosidades mesmo!

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  3. Puxa, que pesquisa bacana, Carlinhos.
    Você pescou pérolas maravilhosas. Muito bom!

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