Por Carlos Torres Moura
O colunista de blog Augusto Nunes, da Veja, publicou em 19.12.10 um emocionado laudatório dirigido ao príncipe dos sociólogos do Brasil - o ex-presidente Fernando Henrique.
Na visão dele, de seus seguidores e de jornalistas afins, Lula sofre de uma inveja crônica de seu antecessor.
Já no lado oculto da lua, dos sem-imprensa, não há controvérsias: pensa-se justamente o contrário.
Há uma campanha - de pouquíssima repercussão, diga-se - para trazer de novo FHC aos pódios. Inúmeros derrotados na última eleição estão condenando José Serra por, novamente, ter excluído o fidalgo dos palanques eletrônicos. Essa corrente acredita que, se tivessem sido exibidas as "benesses" dos anos tucanos , o pleito estaria no papo. Você concorda? Eu não.
Fora o Plano Real dos anos Itamar (de resto amplamente cantado na campanha), o que restou? A privatização fim-de-feira da Vale? O até agora não esclarecido e estranho esquema na venda das teles? O instituto da reeleição?
Quem quiser se aventurar pelo texto augustino - seguido dos meus comentários - aviso: é uma longa declaração de amor político. Muito bem redigida, por sinal. No invólucro. No conteúdo não é lá essas coisas.
O texto original está intercalado por minhas intervenções em itálico. Até agora (em 22/12), não foram publicadas no blog dele. E certamente não o serão.
Reconheço que eu poderia terminar o ano ocupado com coisas que alegram meu imaginário - os filmes que vi, os livros que li, as músicas que escutei, os lugares por onde viajei. Infelizmente, sou dado a recaídas masoquistas. Principalmente quando vejo querer triunfar as injustiças, manejadas pelas orações das nulidades.
FHC foi o acorde dissonante na ópera do absurdo que Lula recomeçou (por Augusto Nunes – 19/12/2010)
Prezado Augusto,
Esse exacerbado processo comparativo entre Lula e Fernando Henrique está se tornando, na opinião deste modesto leitor, uma discussão inócua. Redundante e cada vez mais desnecessária.
Os exageros e as injustiças são visíveis nos dois lados. Para os blogs situacionistas – com algumas exceções – não há erros no governo atual. Para os contrários – sem exceção – só há desgraças. O vice-versa vale para o período FHC (sem ofensa, só pra reduzir caracteres).
Há os que martelam que o mensalão foi a descoberta de um bando de capetas que deveria ter levado o presidente à destituição. Há os que consideram a aprovação do instituto da reeleição uma medonha nódoa política para proveito próprio (se tivesse sido proposta por Lula, o operário teria sido esquartejado em praça pública pela imprensa).
Deixo alguns comentários sobre seu texto. Sei que raramente você admite discordantes frequentando sua seara. Mas, considere um dado: ouvir o contrário pode ter um efeito desentediante. Prefiro até que não seja publicado, não gostaria de provocar mais ainda a ira de seus leitores, o espírito do Natal está aí.
Só escrevi porque o espaço está aberto no site da Veja. Mas você tem todo o direito de recusar a presença das dissonâncias. Democracia tem que existir na vida pública. Na privada cada um tem o direito de fazer suas leis.
Grato pela atenção,
Carlos Torres Moura
Texto original
De volta ao Brasil de sempre, resignaram-se há oito anos as paredes do gabinete presidencial depois de uma ligeira contemplação do novo inquilino. Desde Jânio Quadros, a grande sala no terceiro andar do Palácio do Planalto já abrigou napoleões de hospício, generais de exército da salvação, perfeitas cavalgaduras, messias de gafieira, gatunos patológicos, vigaristas provincianos e outros exotismos da fauna brasileira. Por que não um Luiz Inácio Lula da Silva?
Quem seriam? Matei as charadas dos iniciais, mas estou em dúvida quanto aos últimos. Está tudo em ordem cronológica? Não dá pra nomear?
Quem conhece a saga republicana sabe que a ascensão ao poder de um ex-operário metalúrgico só restabeleceu a rotina da anormalidade que vigora, com curtíssimos intervalos, desde o fim do governo do grande Juscelino Kubitschek.
Anormalidade que vigora desde JK? De fato, um operário na presidência é uma tremenda anormalidade. E incomoda. Para muitos não deveria acontecer, vai contra a lógica. Como ficaria? Só os intelectuais? Canastrão de Hollywood, como o Reagan, vale?
Na galeria dos retratos dos presidentes, Lula está à vontade ao lado dos vizinhos de parede. Sente-se em casa. A discurseira delirante e ininterrupta está em perfeita afinação com a ópera do absurdo. O acorde dissonante é Fernando Henrique Cardoso. Um confirma a regra. O outro é a exceção.
A figura de linguagem mais apropriada para FHC seria “acorde normal”, não?Os outros – anormais – é que seriam os dissonantes.
O migrante nordestino que chegou à Presidência sem escalas em bancos escolares tem tudo a ver com o país dos 14 milhões de analfabetos, dos 50 milhões que não compreendem o que acabaram de ler nem conseguem somar dois mais dois, da imensidão de miseráveis embrutecidos pela ignorância endêmica e condenados a uma vida não vivida. Esse mundo é indulgente com intuitivos que falam sem parar sobre assuntos que ignoram. E é hostil a homens que pensam e agem com sensatez. É um mundo que demora a alcançar em sua exata dimensão a lucidez do sociólogo nascido no Rio que tinha escrito muitos livros quando se instalou no Planalto.
Ou seja, Augusto: é um montão de gente burra. Iletrada. Que ainda consegue botar um dos seus no planalto. Mas algo me intriga: só os cultos pensam e agem com sensatez? Um analfabeto ou um semi-letrado já nasce hostil a ela? Outra coisa: quando boa parte dessas pessoas votaram duas vezes em FHC, eram o quê? Hostis à sensatez ou não? Sabe o que eu acho? Nem uma coisa nem outra. Eles gostam mesmo de quem lhes põe, direta ou indiretamente, um tutuzinho no bolso. Seja com estabilizações de moeda ou com inclusões sociais. Mais uma pergunta: escrever muitos livros qualifica de antemão qualquer pessoa para o exercício de um cargo público? Se sim, Zilda Gasparetto para presidente! Mais de trinta livros publicados.
O Brasil de Lula tem a cara primitiva de sempre. O Brasil de FHC provou que a erradicação do atraso não é impossível. Pareceu até civilizado no primeiro dia de 2003, quando se completou um processo sucessório exemplarmente democrático. Durante a campanha eleitoral, o presidente fez o contrário do que faria o sucessor. Embora apoiasse José Serra, não mobilizou a máquina administrativa em favor do candidato, não abandonou o emprego para animar palanques e consultou os principais concorrentes antes de tomar decisões cujos efeitos ultrapassariam os limites do mandato prestes a terminar.
Ou seja: o Brasil de Lula anda de tanga, tacape e cocar. Explique-me então o paradoxo: se ele seguiu o receituário de FHC – e foi useiro e vezeiro do Plano Real – seu governo foi um fracasso? Não conheço elogios à era Lula vindo do grupo radicalmente opositor na imprensa. Mas todos cobram a “usurpação” do real etc. Não teria sido isso o motivo do “fracasso”? Quanta contradição! É possível, sim, que Fernando não tenha subido em palanques, não tenho as informações à mão. Mas é proibido? Há impedimento legal? Lula abandonou o emprego para ir aos comícios de Dilma? Outra pergunta: o sociólogo tinha por Serra o mesmo entusiasmo que Lula tem por Dilma?
NEM RUTH CARDOSO FOI POUPADA
Consumada a vitória do adversário, FHC pilotou o período de transição e ajudou a conter a fuga de investidores inquietos com a folha corrida do PT. O Brasil de janeiro de 2003 tinha poucas semelhanças com o que Itamar Franco encontrou depois do despejo de Fernando Collor. Em 1994, o ministro da Fazenda de Itamar comandou a montagem do Plano Real. Nos oito anos seguintes, fez o suficiente para entregar a Lula um Brasil alforriado da inflação e da irresponsabilidade fiscal, modernizado pela privatização de mamutes estatais deficitários e livre de tentações autoritárias.
Conter “investidores inquietos” foi um favor, Augusto? Não seria uma obrigação de qualquer governante sério? Você acredita que Lula, numa vitória do Serra, iria botar fogo no coreto antes de entregar a pasta? Mamutes estatais “deficitários”? A Vale do Rio Doce? Livrar um país de tentações autoritárias é impossível. Vai ter sempre alguém sonhando na calada da noite com a deposição de Lula, por exemplo. Desafetos radicais costumam pensar assim. Digamos que FHC, por sua conduta democrática, tenha ajudado a consolidar as instituições, para usar um jargão jornalístico. Alguma proeza nisso? Nada mais que seu dever.
“Aqui você deixa um amigo”, disse o sucessor com a faixa presidencial já enfeitando o peito. Foi a primeira das mentiras, vigarices, trapaças e traições que alvejariam, nos oito anos seguintes, a assombração que está para o SuperLula como a kriptonita para o Super-Homem. Criminosamente solidário com José Sarney, a quem chamava de ladrão, obscenamente amável com Fernando Collor, a quem chamava de corrupto, o ressentido incurável, incapaz de absorver as duas derrotas no primeiro turno e conformar-se com a inferioridade intelectual, guardou o estoque inteiro de truculências e patifarias para tentar destruir um antigo aliado, um adversário leal e um homem honrado.
Você não pegou um pouco pesado, Augusto? O exagero adverbial é que está me parecendo um ressentimento. Não seria digno de seu ídolo, eu diria. Conformar-se com inferioridade intelectual? Que preconceito é esse, Augusto? Onde está escrito que superioridade intelectual torna um cidadão melhor do que o outro? Francamente, logo você, um jornalista democrata! Truculência e patifaria de Lula para destruir o FHC? Não vi isso nesses oito anos. Vi, sim, um adversário não raro veemente contra certas políticas do governo de Fernando Henrique. Sua frase deu a esse comportamento um aspecto pessoal e injusto. Como se Lula quisesse – ou pudesse! – alijar ou aleijar, em caráter particular, alguém como o ex-presidente. Se buscarmos os arquivos, leremos várias menções respeitosas do operário ao intelectual durante os últimos oito anos. E quem não se lembra da presença de Lula no enterro de dona Ruth Cardoso, abraçando emocionado seu “desafeto”? Não transportemos o acirramento verbal durante uma campanha para a vida humana, Augusto!
Lula nunca pronuncia o nome do antecessor, evita até identificá-lo pelas iniciais. Delega as agressões frontais a grandes e pequenos canalhas, que explicitam o que o chefe insinua. Há sempre os sarneys, dirceus, jucás, berzoinis, collors, dutras, renans, mercadantes, tarsos, gilbertinhos, dilmas e erenices prontos para a execução do trabalho sujo que não poupou sequer Ruth Cardoso, vítima do papelório infame forjado em 2008 na fábrica de dossiês da Casa Civil. A cada avanço dos farsantes correspondeu uma rendição sem luta do PSDB, do PPS e do DEM. FHC não é atacado pelos defeitos que tem ou pelos erros que cometeu, mas pelas qualidades que exibe e pelas façanhas que protagonizou.
Os nomes grafados em minúsculas significam a menção a um “ genérico” dos titulares dos mesmos? Ou uma forma de desqualificá-los? É interessante - e corajoso - incluir a presidente eleita entre os “grandes e os pequenos canalhas” que “executam trabalhos sujos”. Você está dizendo que houve uma fábrica de dossiês, eu não sei. Há muito deixei de acreditar em versões da grande imprensa brasileira. Se tenho fosfato para duvidar de ações oficiais, tenho também para fazê-lo diante das “verdades absolutas” vendidas pela imprensa. Haveremos de concordar, no entanto, que em qualquer investigação não se deve poupar ninguém. Não pode haver intocáveis, nem mesmo Ruth Cardoso.
Ele merecia adversários menos boçais e aliados mais corajosos. Há algo de muito errado com a oposição oficial quando um grande presidente, para ressuscitar verdades reiteradamente assassinadas desde 2003, tem de defender sozinho um patrimônio político-administrativo que deveria ser festejado pelos partidos que o apoiaram. Há algo de muito estranho com um PSDB que não ouve o que diz seu presidente de honra. Nem lê o que escreve, como atesta a releitura de dois artigos publicados no Estadão.
Não acho que o PSDB tenha ficado indiferente a Fernando Henrique por desprezar o patrimônio por ele legado. Acho que, de fato, ele tira mais votos do que dá, hoje. Gostaria de conhecer uma pesquisa sobre isso. Esse “achismo” não é um julgamento de valores. É constatação.
O PONTO FORA DA CURVA
Em outubro de 2008, FHC avisou que a democracia brasileira estava ameaçada pelo “autoritarismo popular” do chefe de governo, que poderia descambar numa espécie de subperonismo amparado nas centrais sindicais, em movimentos ditos sociais e nas massas robotizadas. “Para onde vamos?”, perguntava o título do primeiro artigo. A Argentina de Juan Domingo Perón foi para os braços de Isabelita e acabou no colo de militares hidrófobos. O Brasil de Lula foi para Dilma Rousseff. É cedo para saber onde acabará.
Exagero dele, Augusto, exagero. Situações históricas completamente diferentes, origens políticas substancialmente opostas e ações públicas dessemelhantes. Perón era um caudilho autocrata, capaz de levar ao poder uma estrela do cabaré para sustentá-lo. Dilma nunca dançou tango em salões vermelhos. Veio da luta armada e tornou-se uma tecnocrata política. E nunca se traiu. Cá para nós: que instituição importante foi desrespeitada nos governos de Lula? A igreja, já sob a égide conservadora (eu disse conservadora? Fui delicado demais) de Bento XVI manifesta-se politicamente até na hora em que não deveria. Funcionam independentes o STF, a justiça comum, a OAB, os partidos, a Bolsa de Valores, as organizações empresariais, o mercado financeiro e, principalmente, a imprensa. Que fez de Lula gato e sapato, a ponto de poder chamá-lo de patife, como você o faz livremente neste artigo.
Em fevereiro, com 968 palavras, FHC enterrou no jazigo das malandragens eleitoreiras a fantasia costurada durante sete anos. “Para ganhar sua guerra imaginária, o presidente distorce o ocorrido no governo do antecessor, autoglorifica-se na comparação, nega o que de bom foi feito e apossa-se de tudo que dele herdou como se dele sempre tivesse sido”, resumiu. Depois de ensinar que o Brasil existia antes de Lula e existirá depois dele, recomendou que se apanhasse a luva atirada pelo sucessor: “Se o lulismo quiser comparar, sem mentir e sem descontextualizar, a briga é boa. Nada a temer”.
Vaidade por vaidade, considero empatada a peleja. Mas confesso estar cansado dessa história de plano real. Como se isto – e somente isto – fosse responsável pelos imensos avanços sociais do governo Lula. Como se, não existindo o plano real, a equipe econômica de Lula não fosse capaz de fazer um igual. Como se esse plano não fosse fruto – também – das tentativas erradas durante o período Sarney, pois foi arquitetado por parte da mesma equipe do Cruzado. Como se um governo não herdasse dos anteriores vitórias e derrotas. E como se Fernando Henrique tivesse assumido num caos e transformado o Brasil numa potência ao entregá-lo a Lula.
Em vez de seguir o conselho e sugerir a Lula que topasse um debate com Fernando Henrique, José Serra reincidiu no crime praticado em 2002 — com agravantes. Além de esconder o líder que aumentou a distância entre o país e a era das cavernas, apareceu no horário eleitoral ao lado de Lula, convertido num Zé decidido a prosseguir a obra do Silva. Aloysio Nunes Ferreira fez o contrário. Tinha 3% das intenções de voto quando transformou FHC em principal avalista da candidatura. Elegeu-se senador com a maior votação da História. Saudado por sorrisos, cumprimentos e aplausos quando caminha nas ruas de São Paulo, FHC nunca foi hostilizado em público. Depois da vaia no Maracanã, Lula não voltou a dar as caras fora do circuito das plateias amestradas.
Não dá para aferir, Augusto. Fernando Henrique nunca foi num grande evento no Maracanã, ao que saiba. Muito menos numa abertura de Panamericano. Lembra do Nelson Rodrigues? No Maracanã vaiam até minuto de silêncio. Acho que Lula já seria aplaudido hoje, especialmente depois da invasão do Alemão (o povo é afeito a esses detalhes momentâneos). Fernando? Sei não. Rua de S.Paulo é uma coisa, arquibancada de Morumbi é outra.
Desde o dia da eleição, FHC tem exortado o PSDB a transformar-se num partido de verdade, com um programa que adapte à realidade brasileira a essência da social-democracia, combata sem hesitações a corrupção institucionalizada e, sobretudo, aprenda que o papel da oposição é opor-se, como ele próprio tem feito há oito anos. “Por enquanto, o único partido que temos é o PT”, repetiu há dias. “Sem uma linha política clara a seguir, o PSDB continuará a agir segundo as circunstâncias e a perder tempo com questões pontuais”. Pode perder de vez também o respeito e a confiança do eleitorado oposicionista, adverte a reação provocada pela Carta de Maceió. O teor vergonhoso do documento comprova que os governadores tucanos não captaram o recado do patriarca.
Enfim, um elogio a Lula. É o presidente de honra do único partido que temos. Ou seja: os demais presidem ficções.
Na trajetória desenhada pelos presidentes da República, FHC é o ponto fora da curva. Pode ser esse o seu destino, sugere a paisagem deste fim de 2010. Assegurada a vaga na História, poupado da obsessão pelo poder, ainda assim não recusa o combate, não faz acordos, não capitula. Em respeito à própria biografia, e por entender que a nação merece algo melhor, continua a apontar a nudez do pequeno monarca. Oito anos mais velho, ficou oito anos mais novo: nenhum líder político é tão parecido com a oposição real, rejuvenescida e revigorada neste outubro por 44 milhões de votos, quanto Fernando Henrique Cardoso.