Páginas

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A máquina do mundo

Por Carlos Torres Moura


Embora extraídos da revista politicamente mais calhorda do país - a veja - esses trechos significam um Brasil humano, solidário, desprendido. São essas pessoas que movem a máquina do mundo brasileiro, junto com as lavadeiras, as faxineiras, os porteiros, os motoristas de ônibus, os professores, os estivadores, os transportadores de carga, as telefonistas, as secretárias das clínicas, os garis, os vendedores do comércio, as costureiras, os operários, as enfermeiras, as empregadas domésticas, os motoqueiros, os controladores de vôos, os caminhoneiros, os eletricistas, os bombeiros, os pedreiros, os padeiros, etc

"É gente como o auxiliar de sonda Erbeson Costa Rocha, cearense morador de Roraima, e o advogado William Cunha Von-Held, de Cabo Frio, na Região dos Lagos fluminense. Erbeson pegou R$ 2 mil e 25 dos seus 45 dias de folga para doar às vítimas da enchente. Viajou de Salvador para o Rio de ônibus, enfrentando 1.649 quilômetros de estrada, para dormir abrigado em uma igreja. Passa o dia no ginásio Pedrão, que foi transformado em centro de recebimento de doações e é onde voluntários e funcionários da Defesa Civil, prefeitura e governo do Estado se reúnem para oferecer apoio psicológico e jurídico, distribuir roupas e mantimentos e ajudar na busca por desaparecidos. Erbeson foi sozinho para Teresópolis, cidade onde nunca esteve, arcando com todos os custos da viagem. Só vai embora em meados de fevereiro. “Em 2008, fui para Blumenau, quando aconteceu aquela catástrofe por conta das chuvas. Eu não consigo ver tanto sofrimento e não fazer nada, se eu posso ajudar. Não sou rico, mas tenho saúde e posso trabalhar. Estou aqui para ser útil e fazer o que for preciso”, explica o soldador, que ontem trabalhava dando baixa na saída de colchões e outros donativos distribuídos para os desabrigados e desalojados. “Tem caminhão de doação chegando meia-noite e precisa de alguém para descarregar. Dorme-se pouco por aqui, mas ninguém reclama”, garante.


Diferente de Erbeson, William não estava de folga. Funcionário da prefeitura de Cabo Frio, ele faz parte do grupo de 28 pessoas que se mudou temporariamente para Teresópolis para trabalhar com a Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos no auxílio às vítimas das chuvas. Ontem, passou parte do dia num galpão de bebidas que abriga quase 200 pessoas no bairro Meudon fazendo o cadastramento de famílias que vão receber o Aluguel Social. “É a primeira vez que fico tão perto de uma tragédia como esta. Ouvimos histórias muito tristes e vemos famílias e vidas destruídas. Estou aqui a serviço. Fazendo o meu trabalho eu posso contribuir para, de alguma forma, ajudar a diminuir esse sofrimento. Já me sinto útil“, afirma.
"

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

QUE PROTESTO É ESSE?

O texto abaixo é uma resposta ao outro que vem logo depois. Quem quiser ler na sequência correta deve começar de baixo para cima.
--------------------------------------------------------------------------------------


QUE PROTESTO É ESSE?

Enviado por: Viviane Souza Pereira

 

Émile Zola, escreveu o artigo J’accuse (Eu Acuso) como um manifesto de denúncia às arbitrariedades do poder instituído francês em relação ao caso Dreyfus, caso que ficou amplamente conhecido no mundo. O grito de acusação do brilhante escritor francês serviu como denúncia explícita dos mandos e desmandos do Estado Maior Francês e acabou resultando em inúmeros apoios à causa do conhecido caso Dreyfus.
O escritor francês - autor, entre outras, da magnífica obra Germinal, que expõe o sofrimento dos trabalhadores nas minas de carvão - preocupou-se em denunciar toda sorte de manobras levadas a cabo pelo exército francês a fim de garantir a condenação de um militar de origem judia e simples.
Em contrapartida, o artigo homônimo do Profº Igor Pantuzza Wildmann, referindo-se ao fatídico assassinato do Profº Kássio Vinícius Castro Gomes - em uma faculdade de Belo Horizonte - pretensamente, busca denunciar as penúrias do sistema educacional brasileiro e, embora apresente críticas procedentes e exponha situações que notadamente vivenciamos, peca sobremaneira ao tratar a exceção como regra e cair na perigosa generalização.
Sutil, indevida e perigosamente, coloca em questão importantes conquistas da população brasileira, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Política Nacional de Direitos Humanos e a Política Nacional de Assistência Social e o novo formato pedagógico-educacional, ainda e sempre, em construção.
Contribui para a histeria inconsequente e improdutiva que retroalimenta o conservadorismo travestido de saudosismos e preocupação com a moral e os bons costumes que, em realidade, sustentam a manutenção da histórica, arraigada e decadente elite nacional em detrimento da grande massa empobrecida e miserável que, somente recentemente começou a experimentar condições mais ou menos decentes para os padrões burgueses de pensamento e de organização da vida.        
Nesse sentido, o texto parece desaguar em um apelo ideológico, moralizante e quase sacro, muito bem elaborado, é fato, mas que se desvirtua em um discurso que representa a perigosa massificação de pensamento, elemento fundamental na manutenção da lógica desumanizante que vivenciamos.
Além disso, incentiva a única espécie de ódio de classe que acredito existir no Brasil: o ódio nutrido pela elite nacional em direção aos pobres e a tudo que eles representam. Sim, o único ódio de classe existente no Brasil, uma vez que os “subalternos”, engolem sua revolta e ao invés de nutrirem rancor pela classe que os domina (fato que poderia desaguar em uma bela revolução consciente pelas mãos dos que são mais numerosos e efetivamente produzem nossa riqueza), na realidade, fazem todos os sacrifícios e almejam se tornarem iguais aos poderosos... iguais em que? Em dominação, em consumo exacerbado, em desmandos, em corrupção, em impunidade, em hipocrisia...
Os pobres são culpados por seu infortúnio, imobilismo ou ignorância? Não! Sua situação é condicionada pelo amplo processo de alienação a que estamos, todos nós, sim, todos nós, submetidos. Submetidos, o que é pior, por uma forma de produção e reprodução da vida que nós mesmos criamos, na mais perfeita lógica da criatura que supera o criador e foge a seu controle.
Ao bradar sua ira contra a lógica imoral, indisciplinada e violenta em que se encontra mergulhada a sociedade sem, no entanto, considerar as causas estruturais deste fenômeno, exposições como a deste artigo somente enfraquecem a reflexão necessária e, em contrapartida, oferecem importante reforço para o aprofundamento do fosso separatista em que vivemos, retomando o discurso moralizante, individualizado e, infelizmente, de apelo social que encontra grande eco em momentos de crise como o atual. Momentos em que o pensamento mais profundo que busca localizar a gênese, a estrutura e a essência dos fatos, é cada vez mais ridicularizado, em nome de reflexões rasas e esparsas e de respostas pragmáticas e imediatistas, bem ao contento dos pós-modernos de plantão e que nada fazem a não ser perpetuar o poder dos que historicamente o detém!
Absurdo! Eu diria que o tom deste grito de acusação não ecoa como um grito desesperado daqueles que se preocupam com inclusão social, direitos humanos, boa educação, mas sim um exemplo do perigo que representam os momentos de comoção nacional diante de situações limite...foi assim no caso Nardoni, do menino João Hélio e outros tantos...qualquer conteúdo e crítica razoável presente no artigo (sim, encontrei alguns) são abafados pela ignorância e irracionalismo de palavras bonitas, mas que quase sempre demonstram pouca ou nenhuma compreensão para além de um olhar de classe dominante, desconhecedor das aflições da população brasileira! E mais, desconhecedor do quanto de luta popular foi e ainda é necessária para assegurar as importantes conquistas de cidadania que relutante e tardiamente começam a ser efetivadas.
Um disparate de críticas metralhadas irresponsavelmente em todas as direções, críticas rasas e, o que é pior, efetuadas com um brilhantismo no uso das palavras que, certamente, envolverá, ou melhor, já envolveu pela breve pesquisa que fiz no google, um número muito grande de desavisados e descuidados na leitura, que assim como todos nós andam preocupados com a situação que vivemos, mas que nem todos devem compactuar com o teor preconceituoso, de classe e, portanto conservador, do artigo do respeitado intelectual, expoente "corajoso" dos "cidadãos de bem" do Brasil!
Acusar a sociedade como um todo, profissionais diversos, políticos, mídia, famílias e, fundamentalmente indivíduos, é fácil! Fácil e leviano. Interessante que ao apontar sua metralhadora, o bem sucedido jurista e professor universitário, se coloca a parte deste processo, como se a sociedade em que vivemos não fosse nada mais que uma construção nossa, por meio das relações sociais que estabelecemos, entre elas o próprio capital, que embora pareça cada vez mais ter vida própria, nada mais é que uma forma de produzir e reproduzir a vida, organizada e orquestrada por nós mesmos...
Será que não se percebe que cada uma das críticas desferidas, algumas até com bastante propriedade, devem ser dirigidas a todos nós, enquanto humanidade, que além de produzirmos, reproduzimos cotidianamente toda essa sorte de tragédias anunciadas?!
Acredito que o brilhantismo no uso das palavras (embora denote uma irresponsabilidade intelectual pela superficialidade das críticas) presente na reflexão do professor em questão, somado à bravata e à crença de representar a voz de tantos, tão conservadores quanto ele ou ignorantes, no sentido de ignorarem, desconhecerem, ofuscou a premissa básica de que não existe o lado do bem e o lado do mal, uma vez que estamos envoltos, ainda que involuntária e alienantemente, em uma estrutura que massacra sim, aqueles que pouco ou nada tem, em prol da acumulação cada vez maior daqueles que vivem exatamente da, a partir da, apesar da e, fundamentalmente, por conta da existência daqueles que criam o valor de fato em nossa sociedade.
Certamente serei acusada de pseudo- intelectual de plantão, parte do grupo que romantiza a “revolta dos oprimidos”. Eu e, ainda bem, tantos outros da mesma estirpe, agradecemos, desde já, o elogio.             
Viviane Souza Pereira, assistente social e professora universitária, também crítica à situação que vivenciamos, mas plenamente ciente de que o caminho da reflexão e da transformação precisa ser outro, bem diferente e mais profundo do que o acusador propõe.

--------------------------------------------------------------------------------------



J’ACUSE !!! (Eu acuso !) DESAGRAVO DO PROF. IGOR AO ASSASSINATO DO PROF. KÁSSIO VINICIUS.


J’ACUSE !!!
(Eu acuso !)

(Tributo ao professor Kássio Vinícius Castro Gomes)

« Mon devoir est de parler, je ne veux pas être complice.
(Émile Zola)

Meu dever é falar, não quero ser cúmplice. (…)
(Émile Zola)

Foi uma tragédia fartamente anunciada. Em milhares de casos, desrespeito. Em outros tantos, escárnio. Em Belo Horizonte, um estudante processa a escola e o professor que lhe deu notas baixas, alegando que teve danos morais ao ter que virar noites estudando para a prova subsequente. (Notem bem: o alegado “dano moral” do estudante foi ter que… estudar!).

A coisa não fica apenas por aí. Pelo Brasil afora, ameaças constantes. Ainda neste ano, uma professora brutalmente espancada por um aluno. O ápice desta escalada macabra não poderia ser outro.

O professor Kássio Vinícius Castro Gomes pagou com sua vida, com seu futuro, com o futuro de sua esposa e filhas, com as lágrimas eternas de sua mãe, pela irresponsabilidade que há muito vem tomando conta dos ambientes escolares.

Há uma lógica perversa por trás dessa asquerosa escalada. A promoção do desrespeito aos valores, ao bom senso, às regras de bem viver e à autoridade foi elevada a método de ensino e imperativo de convivência supostamente democrática.

No início, foi o maio de 68, em Paris: gritava-se nas ruas que “era proibido proibir”. Depois, a geração do “não bate, que traumatiza”. A coisa continuou: “Não reprove, que atrapalha”. Não dê provas difíceis, pois “temos que respeitar o perfil dos nossos alunos”. Aliás, “prova não prova nada”. Deixe o aluno “construir seu conhecimento.” Não vamos avaliar o aluno. Pensando bem, “é o aluno que vai avaliar o professor”. Afinal de contas, ele está pagando…

E como a estupidez humana não tem limite, a avacalhação geral epidêmica, travestida de “novo paradigma” (Irc!), prosseguiu a todo vapor, em vários setores: “o bandido é vítima da sociedade”, “temos que mudar ‘tudo isso que está aí’; “mais importante que ter conhecimento é ser ‘crítico’.”

Claro que a intelectualidade rasa de pedagogos de panfleto e burocratas carreiristas ganhou um imenso impulso com a mercantilização desabrida do ensino: agora, o discurso anti-disciplina é anabolizado pela lógica doentia e desonesta da paparicação ao aluno – cliente…

Estamos criando gerações em que uma parcela considerável de nossos cidadãos é composta de adultos mimados, despreparados para os problemas, decepções e desafios da vida, incapazes de lidar com conflitos e, pior, dotados de uma delirante certeza de que “o mundo lhes deve algo”.

Um desses jovens, revoltado com suas notas baixas, cravou uma faca com dezoito centímetros de lâmina, bem no coração de um professor. Tirou-lhe tudo o que tinha e tudo o que poderia vir a ter, sentir, amar.
Ao assassino, corretamente , deverão ser concedidos todos os direitos que a lei prevê: o direito ao tratamento humano, o direito à ampla defesa, o direito de não ser condenado em pena maior do que a prevista em lei. Tudo isso, e muito mais, fará parte do devido processo legal, que se iniciará com a denúncia, a ser apresentada pelo Ministério Público. A acusação penal a o autor do homicídio covarde virá do promotor de justiça. Mas, com a licença devida ao célebre texto de Emile Zola, EU ACUSO tantos outros que estão por trás do cabo da faca:

EU ACUSO a pedagogia ideologizada, que pretende relativizar tudo e todos, equiparando certo ao errado e vice-versa;

EU ACUSO os pseudo-intelectuais de panfleto, que romantizam a “revolta dos oprimidos”e justificam a violência por parte daqueles que se sentem vítimas;

EU ACUSO os burocratas da educação e suas cartilhas do politicamente correto, que impedem a escola de constar faltas graves no histórico escolar, mesmo de alunos criminosos, deixando-os livres para tumultuar e cometer crimes em outras escolas;

EU ACUSO a hipocrisia de exigir professores com mestrado e doutorado, muitos dos quais, no dia a dia, serão pressionados a dar provas bem tranqüilas, provas de mentirinha, para “adequar a avaliação ao perfil dos alunos”;

EU ACUSO os últimos tantos Ministros da Educação, que em nome de estatísticas hipócritas e interesses privados, permitiram a proliferação de cursos superiores completamente sem condições, freqüentados por alunos igualmente sem condições de ali estar;

EU ACUSO a mercantilização cretina do ensino, a venda de diplomas e títulos sem o mínimo de interesse e de responsabilidade com o conteúdo e formação dos alunos, bem como de suas futuras missões na sociedade;

EU ACUSO a lógica doentia e hipócrita do aluno-cliente, cada vez menos exigido e cada vez mais paparicado e enganado, o qual, finge que não sabe que, para a escola que lhe paparica, seu boleto hoje vale muito mais do que seu sucesso e sua felicidade amanhã;

EU ACUSO a hipocrisia das escolas que jamais reprovam seus alunos, as quais formam analfabetos funcionais só para maquiar estatísticas do IDH e dizer ao mundo que o número de alunos com segundo grau completo cresceu “tantos por cento”;

EU ACUSO os que aplaudem tais escolas e ainda trabalham pela massificação do ensino superior, sem entender que o aluno que ali chega deve ter o mínimo de preparo civilizacional, intelectual e moral, pois estamos chegando ao tempo no qual o aluno “terá direito” de se tornar médico ou advogado sem sequer saber escrever, tudo para o desespero de seus futuros clientes-cobaia;

EU ACUSO os que agora falam em promover um “novo paradigma”, uma “ nova cultura de paz”, pois o que se deve promover é a boa e VELHA cultura da “vergonha na cara”, do respeito às normas, à autoridade e do respeito ao ambiente universitário como um ambiente de busca do conhecimento;

EU ACUSO os “cabeça – boa” que acham e ensinam que disciplina é “careta”, que respeito às normas é coisa de velho decrépito,

EU ACUSO os métodos de avaliação de professores, que se tornaram templos de vendilhões, nos quais votos são comprados e vendidos em troca de piadinhas, sorrisos e notas fáceis;

EU ACUSO os alunos que protestam contra a impunidade dos políticos, mas gabam-se de colar nas provas, assim como ACUSO os professores que, vendo tais alunos colarem, não têm coragem de aplicar a devida punição.

EU VEEMENTEMENTE ACUSO os diretores e coordenadores que impedem os professores de punir os alunos que colam, ou pretendem que os professores sejam “promoters” de seus cursos;

EU ACUSO os diretores e coordenadores que toleram condutas desrespeitosas de alunos contra professores e funcionários, pois sua omissão quanto aos pequenos incidentes é diretamente responsável pela ocorrência dos incidentes maiores;

Uma multidão de filhos tiranos que se tornam alunos -clientes, serão despejados na vida como adultos eternamente infantilizados e totalmente despreparados, tanto tecnicamente para o exercício da profissão, quanto pessoalmente para os conflitos, desafios e decepções do dia a dia.

Ensimesmados em seus delírios de perseguição ou de grandeza, estes jovens mostram cada vez menos preparo na delicada e essencial arte que é lidar com aquele ser complexo e imprevisível que podemos chamar de “o outro”.

A infantilização eterna cria a seguinte e horrenda lógica, hoje na cabeça de muitas crianças em corpo de adulto: “Se eu tiro nota baixa, a culpa é do professor. Se não tenho dinheiro, a culpa é do patrão. Se me drogo, a culpa é dos meus pais. Se furto, roubo, mato, a culpa é do sistema. Eu, sou apenas uma vítima. Uma eterna vítima. O opressor é você, que trabalha, paga suas contas em dia e vive sua vida. Minhas coisas não saíram como eu queria. Estou com muita raiva. Quando eu era criança, eu batia os pés no chão. Mas agora, fisicamente, eu cresci. Portanto, você pode ser o próximo.”

Qualquer um de nós pode ser o próximo, por qualquer motivo. Em qualquer lugar, dentro ou fora das escolas. A facada ignóbil no professor Kássio dói no peito de todos nós. Que a sua morte não seja em vão. É hora de repensarmos a educação brasileira e abrirmos mão dos modismos e invencionices. A melhor “nova cultura de paz” que podemos adotar nas escolas e universidades é fazermos as pazes com os bons e velhos conceitos de seriedade, responsabilidade, disciplina e estudo de verdade.

Igor Pantuzza Wildmann

Advogado – Doutor em Direito. Professor universitário.

sábado, 8 de janeiro de 2011

O pícaro e a búlgara

















Por Carlos Torres Moura

Lula mal acabou de sair e já aprontou mais umas diabruras. Tomou o avião oficial e foi pescar e banhar-se num paraíso paulista por conta de uma unidade militar (vejam que despautério!).

E puxou consigo a imprensa(?) tupiniquim.

Para lá partiram as mírians, os noblats, as catanhedes, os mervais, os azevedos, os nunes, os mainardis, as hipólitas, todos a serviço de seus patrões patriotas. Um cardume que só não se afogou na rotineira enchente paulista porque peixe não afoga. Ainda mais quando salvo por bicos tucanos.

Achando que a isca era pequena, Lula enfiou no anzol dois passaportes diplomáticos para seus filhos, com direito a viagens ao Paraguai e à Argentina. E os escamados morderam-na.

Peixes que se dizem sábios, atletas da palavra nos blogs e nas colunas, abandonaram o atol preservado pela impunidade em que vivem. Morrendo de medo que moluscos venham a habitar seu habitat, correram atrás de um e perderam o cenário e a semana.

Dilma pintou e bordou na calada planaltina. Papeou com chefes de estado, fez mudanças no câmbio, chamou a ministrada para um PAC(to) contra a miséria. Reinou sossegada e absoluta para o país que a elegeu e, no sétimo dia, foi descansar.

Onde será a próxima piracema? Personagem suassuniano capaz de se camaleonar em mil cores e se multiplicar em estripulias, Lula pode sair a qualquer hora do mar e aparecer num rio africano. Ou amanhecer num lago da Ásia.

Não vai ser mole acompanhá-lo com nikons, iPads e passagens de avião rumo ao imprevisível. Custa caro. Os civitas se perderão nas civilizações, os mesquitas nos templos árabes, os frias nas geleiras e os marinhos nos oceanos.

E todos eles juntos poderão se afogar num açude nordestino.

Se Lula conseguir manter essa esperteza pícara, a búlgara vai governar sem atropelos.*

*Numa modesta homenagem semântica a Campos de Carvalho e ao seu genial “O púcaro búlgaro”.





quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Revista Época: Uma família no governo Lula

Uma família no governo Lula
Durante nove anos, a família Costa Pereira, da periferia de São Paulo, deixou a pobreza para ingressar na “nova classe média”. Sua trajetória nos ajuda a compreender os avanços e as contradições do Brasil durante o período
ELIANE BRUM
Marcelo Min
NA SALA COM A CLASSE C
No governo Lula, a família Costa Pereira descobriu como é bom consumir. A TV de tela plana é a estrela da casa, seguida de perto pelo computador e pelo PlayStation 3. No centro, Estela e Hustene, de camisa do Corinthians; Rodrigo, em pé, com a filha Gabriely; Diego e Jade agachados, na frente; Amanda com a filha Rafaela no colo
Os pilares da sua vida cabiam em três quadros na parede da sala. Corinthians, Nossa Senhora de Fátima e Che Guevara. Futebol, religião e ideologia. Era essa a trindade que sustentava Hustene Pereira no início do ano de 2002. No começo de 2011, a conformação é outra. Che Guevara foi banido da sala. Sua cara barbuda foi trocada por uma paisagem. Nossa Senhora de Fátima mora agora numa parede lateral. Não porque a religião tenha perdido importância, mas por uma decisão estética da família. Em seu lugar, há um anjo comprado como lembrança de viagem pelo filho caçula. Ao longo do governo Lula, a parede principal foi sendo tomada por símbolos ligados à classe média. Apenas o Corinthians permanece – irredutível.
A mudança dos símbolos na parede conta a trajetória da família Costa Pereira no governo Lula. E a família Costa Pereira nos ajuda a compreender a complexidade do Brasil nesse período. Na companhia de cerca de 30 milhões de brasileiros, ela deixou a pobreza e ingressou na grande novidade socioeconômica da história recente do país, objeto de estudo de sociólogos e economistas e também de publicitários e marqueteiros: a classe C. “Agora nós somos da nova classe média!”, diz Hustene. Surpreso, mas também orgulhoso. Segundo a Fundação Getulio Vargas, há hoje 95 milhões de brasileiros com renda familiar entre R$ 1.126 e R$ 4.854 por mês. Pela primeira vez, a classe C é maioria no país. Sozinha, pode eleger um presidente.
No geral, a família Costa Pereira representa essa fatia da população que mudou de classe nos últimos anos. No particular, só representa a si mesma. Em sua casa na periferia de Osasco, na Grande São Paulo, Che Guevara foi perdendo espaço na medida em que a família ampliou seu acesso aos bens de consumo. Hoje, a classe C lidera os gastos com eletrodomésticos e eletrônicos no país. A família Costa Pereira faz sua parte: desembolsa R$ 653 por mês no pagamento de prestações. Hustene bem que resistiu ao desterro de Che, mas a mulher, Estela Costa, e os filhos não queriam mais saber de um “guerrilheiro” na parede da sala. “A gente queria algo mais relaxante”, diz Estela. Como os milhões de brasileiros que fizeram a mesma transição nos últimos anos, os integrantes da família Costa Pereira descobriram com um presidente operário que o capitalismo pode ser bom.
No início de 2002, Hustene foi o personagem central de uma reportagem cujo título era “O Homem-Estatística”. Desde então, tenho acompanhado a trajetória de sua família ao longo dos últimos nove anos. Quando o conheci, ele encarnava os números de um momento difícil para o Brasil. Apesar do controle da inflação, o desemprego tinha grande impacto entre os brasileiros urbanos da periferia das grandes cidades. Filas de centenas de pessoas se formavam para uma vaga em geral abaixo de suas qualificações. O tempo de procura por trabalho aumentara, assim como a informalidade. A renda e os benefícios de quem tinha um emprego encolheram.
Hustene era um dos brasileiros que sentiam o chão tremer debaixo do único par de sapatos, sem encontrar sentido nas explicações dos economistas. Em 2002, descobriu que era um dos “excluídos” – termo repetido à exaustão nos discursos, na imprensa e nas ruas na virada do milênio. Vale a pena lembrar a evolução da terminologia na história recente do país. Houve os “descamisados” de Fernando Collor de Mello, no início dos 90. Depois os “excluídos”, com o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. E hoje, ainda que continuemos a falar nos mais pobres, o termo que se popularizou no período de Luiz Inácio Lula da Silva é a classe C ou “nova classe média”.
Em fevereiro de 2002, Hustene completara quatro meses de desemprego. Desde que havia começado a trabalhar, aos 14 anos, pela primeira vez percebia que não conseguiria um novo posto tão cedo. Qual era sua história até aquele momento? Nos anos 60, migrara com o pai e o avô do Rio Grande do Norte para São Paulo, numa trajetória semelhante à de Lula em muitos aspectos. O pai tinha sido metalúrgico no ABC paulista, com Lula na liderança do sindicato. Hustene havia estudado até a 7a série, mais do que o pai. Deixara o chão de fábrica para trabalhar no escritório da indústria. Até perder o emprego, era o Pereira com menos calos nas mãos.
Encontrei Hustene no momento da queda. Aquele instante em que um homem sente as unhas escorregando da borda do abismo. Percebe que não vai conseguir trabalho tão cedo, as contas se acumulam, o essencial é cortado. O projeto familiar começou a ruir quando os filhos mais velhos transferiram a escola para o período noturno para pegar bicos durante o dia. Hustene, nas palavras dele, se sentia “traí­do” pelo país. Ao mesmo tempo, sentia que traía os filhos ao se tornar incapaz de cumprir sua parte no pacto familiar.
A família de Hustene sentia falta não do feijão – mas do “danoninho, das bolachas recheadas, das fraldas descartáveis”. Das pequenas conquistas de consumo a que tiveram acesso quando Hustene estava empregado. Eles não encarnavam as páginas de Graciliano Ramos, como seus antepassados que fugiram da seca, mas uma literatura que ainda estava por ser escrita, a dos filhos do desemprego urbano e industrial. Hustene, que até então se orgulhara de sua datilografia e escrituração fiscal, deparava com a exigência de informática. Nem ele nem os filhos conheciam computador. Hustene assim expressava seu sentimento de exclusão: “Quero que um disco voador venha me tirar daqui”.
Marcelo Min
A TROCA DOS SÍMBOLOSEm 2003, na foto da esquerda, Hustene Pereira era sustentado por uma trindade: Corinthians, Che Guevara e Nossa Senhora de Fátima. Futebol, ideologia e religião. Com a mudança de classe, Che foi trocado por uma paisagem e Nossa Senhora de Fátima por um anjo. Apenas o Corinthians resiste
Naquele período, Hustene perdeu 30 dos 32 dentes da boca. Um após o outro. “Olha, Estela, caiu mais um”, dizia para a mulher ao acordar pela manhã e descobrir-se num pesadelo recorrente. Logo cedo, enfiava sua melhor camisa, seu sapato “social” e partia em busca de uma vaga – a pé, porque não tinha dinheiro para o ônibus. Voltava de cabeça baixa, ombros caídos. Em casa, se escondia. Tinha vergonha de que os vizinhos o vissem durante o dia. “Vão pensar que sou vagabundo.” À noite, debruçava-se sobre o terraço inconcluso, até o primeiro trabalhador passar a caminho do ponto de ônibus. Então, voltava a se esconder, vítima de um tipo novo de maldição.
Na campanha presidencial de 2002, Hustene raspou o fundo da alma e tirou de lá um resto de esperança. Gravou as promessas de Lula em velhas fitas VHS. Mas o primeiro ano de governo foi para ele uma decepção. Sobrevivia apenas com bicos. Diego, o filho mais novo, ajudava no sustento descarregando galões de água por R$ 15 por semana. Rodrigo, o mais velho, trabalhava como mecânico sem registro. Amanda terminava o ensino médio e procurava o primeiro emprego. Mas a exigência de experiência em todas as portas nas quais batia a lançava num limbo. Jade, a caçula, ainda era criança.Viviam em seis numa casa inacabada de sala, cozinha, quarto e banheiro, erguida num terreno deixado pelo pai de Hustene ao morrer.
Hustene identificava-se com Lula. O presidente tinha sido metalúrgico como seu pai. Era corintiano como ele. Nordestino e migrante como ambos. Por coincidência, Lula e Hustene padeceram no início do governo com uma bursite no ombro direito. Com uma diferença: a de Lula foi tratada por bons médicos – e Hustene não conseguia tratamento para a sua. O trabalho braçal só piorava a inflamação. Até hoje Hustene passa noites sem dormir por causa das dores provocadas pela bursite, mas já desistiu de encontrar alívio.
Ao final do primeiro ano de governo, em 2003, Hustene trancou-se no quarto por seis horas. Estava revisando as promessas de Lula. Escreveu uma carta de quatro páginas endereçada ao presidente. Nela, reclamou do desemprego que jogava gente como ele na margem, acusou o Fome Zero de ter atolado no marketing e sugeriu a Lula que viajasse menos para o exterior, porque os problemas do país estavam bem aqui. “Essa conversa de que pegou o país endividado, precisa de mais quatro, oito anos, eu ouvi dos outros. Dele, não posso ouvir”, disse. Assim mesmo, despediu-se com “um forte abraço ao amigo Lula”.
Para avaliar o primeiro ano de governo, Hustene usou aquela que se tornaria a marca de Lula ao falar com o povo: uma metáfora de futebol.“Lula e o Corinthians empataram em 2003. Jogaram para não cair.” Perdoou a ambos. Perder a esperança tanto num como noutro lhe custaria mais do que poderia pagar naquele momento. Só esperava que, ao final do governo, não lhe dessem para a vida a solução que o médico do SUS deu para a bursite: “Não tem cura. Só nascendo de novo”.
Hustene só voltou a conseguir emprego em maio de 2005, no terceiro ano do governo Lula. Enquanto esteve desempregado, fez supletivo e terminou o ensino fundamental. Faltou apenas uma última prova para se formar no ensino médio. Nos três anos e sete meses de desemprego, só não perdeu a lucidez porque tinha em Estela um amor de delicadezas que sobrevivia não só à perda dos dentes, mas à de um mundo inteiro. E tinha o Corinthians. Desde 1974, Hustene monta álbuns dos vários campeonatos de que o clube participa. Toda a vida do Timão está lá, contada em recortes de jornais, frases criativas e layout próprio. Um testemunho que talvez um dia seja exibido no Museu do Corinthians, uma paixão que a vizinhança admira e acompanha. Quando Hustene foi engolido pelo desemprego, o jornaleiro não titubeou: vendeu fiado.
Naquela época, Hustene escrevia e desenhava furiosamente. Ele é um homem que se conta – e esta narrativa é parte do que s torna a história da família tão rica. Desde que fez uma promessa para salvar Diego, desenganado pelos médicos ao nascer, Hustene escreve um diário a Nossa Senhora de Fátima. Nas páginas, sua história se confunde com a do país: “As coisas estão tão difíceis (no Brasil) que não sabemos mais o que fazer. Estou ainda desempregado. Esta palavra causa medo, vergonha e incrimina qualquer pessoa do bem”.
Nos anos em que a miséria entrava pelas frestas da porta como água de enchente, aprendi com Hustene como a honestidade é dura para os mais pobres. Algumas vezes, a família ficou sem água e sem luz por falta de pagamento. Nunca fez um “gato”. Numa ocasião, Estela atravessou São Paulo até a sede do Serviço de Proteção ao Crédito apenas para corrigir seu nome. Tinha recebido uma carta na qual constava “Estelita”. Esclareceu no balcão que quem devia era ela, Estela. Quando o desespero lhe comia por dentro, Hustene levantava o queixo: “Estou desempregado, mas não fico bebendo no boteco. Não bato na mulher e nos filhos. Minha família só tem feijão para comer, mas nunca precisei visitar um filho na prisão nem vi um filho drogado”. Essas palavras o mantinham em pé. Constituíam um princípio. E faziam sentido quando todo o resto virava fumaça. Faziam sentido, mesmo quando no Natal não tiveram feijão – apenas farinha com cebola.
A forma como Hustene decodifica o Brasil é muito particular. Ele não tolera os programas sociais que dão aos mais pobres cesta básica, gás ou leite. Para ele é “esmola do governo”. Nunca cogitou se inscrever no Bolsa Família. “Um homem quer levantar de manhã, pegar um ônibus para o trabalho e pagar as suas contas. Isso é dignidade”, afirma. Os filhos seguem a mesma cartilha. Dão apoio quase incondicional a Lula, mas consideram o Bolsa Família uma “humilhação”.
Por tudo o que é, Hustene só voltou a sentir-se inteiro ao conseguir emprego. Em maio de 2005, tornou-se funcionário de uma empresa de segurança. Ocupava seu posto na recepção de uma indústria farmacêutica. Um dia chamou a atenção da direção ao atender o telefonema de um cliente americano e improvisar uma língua em que os dois se entenderam. Ganhou uma identidade: “Porteiro Pereira”. Partia às 4 horas de casa e voltava para dormir. Ganhava salário mínimo e nenhum benefício. Mas tinha algo que para ele e para os brasileiros pobres sempre foi essencial: registro na carteira de trabalho. O “Porteiro Pereira” era um homem feliz.
Marcelo Min
A VIDA COMO ELA FINALMENTE ÉA família mede a ascensão social pela comida. No passado, sobreviveu com refeições de arroz com limão. Hoje come carne todos os dias. Na foto maior, o almoço de domingo. Na menor, Jade estuda para o vestibular com a ajuda do computador, sob o olhar severo de Che Guevara – “um bicho feio demais”
Em 2006, último ano do primeiro mandato de Lula, Hustene continuava decepcionado com o governo. Naquele momento, revoltava-se com as denúncias de corrupção. Quando o Corinthians jogava mal, Hustene sofria, mas mantinha seu amor pelo time intacto. Na mesma lógica, conseguia perdoar um governo Lula aquém de seus sonhos, mas o “mensalão” travava em sua garganta. Pensou em anular o voto no primeiro turno. Acabou decidindo dar mais uma chance a Lula. Naquela época como hoje, Hustene atribui as falhas do governo aos assessores – nunca ao presidente. Até o final do segundo mandato, ele só não conseguiu encontrar justificativas para os abraços de Lula em José Sarney e Fernando Collor.
Hustene votou em Lula no primeiro turno. E teria ajudado a reelegê-lo, não fosse ter sofrido um derrame por falta de assistência médica. Entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2006, Hustene sentiu-se mal, sua pressão arterial subiu. Estava exaurido por uma jornada diária de 12 horas, sem folgas, nos 70 dias anteriores. No posto de saúde, o médico garantiu que era “só” uma crise de diabetes. Despachou-o para casa. Ao chegar, Hustene sofreu um acidente vascular cerebral (AVC). Perdeu os movimentos do lado esquerdo do corpo. Só voltaria a andar em 2008.
Nunca mais pôde trabalhar. Seu quadro se agravou pela deficiência da rede pública de saúde. Em 2009, Hustene teve um segundo derrame. Neste, apagou-se nele o dom do desenho. Desde então, cada incursão ao médico é uma experiência de degradação. Hustene espera em média seis meses por uma consulta. Quando chega sua vez, é atendido em minutos. O médico pede que faça exames. Ele leva mais seis meses para conseguir realizá-los, fechando o ciclo de um ano. Quando tem nova consulta, outros seis meses depois, os exames estão defasados, e o ciclo recomeça. Enquanto isso, recebe o auxílio-doença e vai tomando os remédios de sempre.
Nas últimas eleições, Estela conseguiu medicamentos em falta na rede pública graças a um candidato que fez do comitê uma farmácia para eleitores desesperados. Perguntei se votariam naquele deputado nas eleições. Estela respondeu: “Claro que não!”. Hustene passou dias pesquisando na internet para escolher seus candidatos. Votou pelo projeto. Os escolhidos pertenciam a quatro partidos diferentes.
Em 2009, Hustene descobriu que tinha uma doença grave e degenerativa nos olhos. Precisava fazer exames para avaliar a progressão e definir o tratamento. Ao comparecer à consulta, a médica estava de férias e não havia substituto. Quando finalmente foi atendido, um mês mais tarde, ela disse que estava curado. Ele não se sente curado – e a doença não é do tipo que se cura sozinha. Não sabe o que fazer, então reza. Espera o ano começar para tentar uma nova avaliação.
Hustene já perdeu muito – e não alcança como viverá sem seus olhos. Como poderá inventar uma vida sem ver os lances do Corinthians, contar suas pequenas aventuras no diário a Nossa Senhora ou apenas olhar dentro dos olhos de Estela e ter certeza de que existe. Um dia me perguntou como poderia fazer para aprender braile. Há anos Hustene vem pagando a deficiência do SUS com nacos do seu corpo. Tem 51 anos.
Para Hustene, a saúde pública era ruim antes. E atravessou o governo Lula ruim. Mesmo assim, Hustene, Estela e os quatro filhos votaram na candidata de Lula. Eles não conheciam Dilma Rousseff e não simpatizaram com o que viram dela nos debates e na propaganda eleitoral. Acreditavam que, por ter sido guerrilheira na ditadura, ela poderia ter problemas para representar o Brasil no exterior. Perguntei a Hustene por que, então, votaram em Dilma. Ele respondeu: “Porque Lula indicou”.
Era claramente um voto pragmático. Votaram em Dilma por concluir que sua vida no governo Lula melhorou. E queriam que continuasse melhorando. Têm números para justificar seu voto. Fazem contas. E as contas da família Costa Pereira são simples: em janeiro de 2003, depois de dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, a renda familiar girava em torno de R$ 700 por mês, em geral menos, às vezes mais; em janeiro de 2011, depois de oito anos do governo Lula, a renda familiar será de quase R$ 4 mil, mais alta que na época da eleição. Em dezembro, um dos filhos foi promovido, e o outro conseguiu um emprego melhor.
Estela, que nos tempos da pobreza às vezes só botava na mesa arroz com limão, explica o que significa o aumento de renda: “Para nós, que somos pobres, o importante é comer bem. E, pela primeira vez, a gente come bem”. Pode parecer pouco para quem nunca passou fome. Mas é enorme para quem já passou. No final de cada mês, Estela peregrina pelos supermercados da região em busca das melhores promoções. Nunca compra tudo de que precisa num só. Compra vários tipos de carne, o suficiente para encher o congelador da nova geladeira dúplex. Estela não tem dinheiro para picanha ou filé, mas sua família agora come carne todo dia. Em setembro de 2010, ela encontrou uma promoção de camarão e serviu um almoço de domingo especial. Como nunca havia preparado camarão, descobriu que o quilo encolhia depois de tirar a casca só na hora de preparar o prato. Encontrar um camarão no arroz virou uma gincana. Mas a família Costa Pereira comeu camarão naquele domingo.
Marcelo Min
NOVOS ENREDOSEntre as mudanças, a família fala da possibilidade de sonhar depois de uma vida limitada à sobrevivência. Na foto maior, Estela e Gabriely no supermercado; acima, Diego no horário de almoço do trabalho no condomínio de Alphaville; à esquerda, Amanda na universidade privada onde termina o curso de enfermagem
Acima da Bíblia e de uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, os armários da cozinha estão lotados de produtos industrializados. Enquanto os mais ricos buscam artigos naturais e orgânicos e defendem o consumo consciente, preocupados com as taxas de colesterol e com o meio ambiente, famílias como a de Hustene e Estela pela primeira vez têm acesso amplo às prateleiras. E o que querem é consumir o máximo possível. Não porque não se preocupem com o meio ambiente, mas porque só agora podem consumir. Quando Hustene aponta as melhorias de seu bairro na periferia, ele diz: “Veja como melhorou! Agora temos banco e supermercado. Só falta um McDonald’s!”.
A estrela da casa é uma TV de tela plana de 42 polegadas. Desde sempre, o lazer da família esteve ligado à televisão. Mas agora chega por meio de um aparelho novo, grande e moderno. E não mais pelos canais da TV aberta. A maior parte da programação é buscada nos canais pagos da TV por assinatura. Há ainda um equipamento de DVD e um videogame de última geração. Nessa nova configuração, Estela e os filhos consideraram Che Guevara “um bicho feio demais para ficar na sala”. Hustene resistiu, mas era um exército de um homem só. Che foi substituído por uma paisagem comprada especificamente para a decoração. Outro personagem simbólico entrou na vida da família. “Eu não gostava deste tal de Noel porque nunca ganhei presente”, diz Hustene. Este foi o terceiro Natal consecutivo com pinheirinho na sala.
O velho Che só deixou o exílio em dezembro. Teve uma ajuda providencial do jogo do bicho. Hustene aposta toda semana na águia e, só neste ano, ganhou mais de R$ 5 mil. O dinheiro foi aplicado na reforma da casa, que agora é chamada de “Complexo do Pankinha” – o apelido de Hustene. “Dinheiro que não é abençoado tem de gastar logo porque voa da mão”, diz Estela. Uma das reformas transformou o corredor onde Estela antes lavava roupa à mão num pequeno escritório – agora que ela tem máquina de lavar roupa. No final de 2010, o escritório ganhou mesa e prateleiras feitas sob medida. Hustene pediu para botar o quadro do Che na parede. “Como você deixou, mãe?”, perguntaram os filhos. “Negociei com seu pai. Em troca, ele vai me dar uma moldura nova para o quadro de fotos.”
Hustene deu um novo lugar a Che Guevara: passado, não mais presente. Che está junto aos livros e álbuns, virou história. “Hoje minha ideologia é a família”, diz. Antes, ele costumava escrever ao revolucionário sobre os acontecimentos no Brasil. Che era seu interlocutor político, assim como Nossa Senhora de Fátima era a ouvinte do cotidiano. Hustene parou de escrever a ele em agosto de 2004. Retornou em 3 de outubro de 2010, logo após o primeiro turno das eleições. Seria interessante saber o que Che pensaria da última carta de Hustene se estivesse vivo: “No primeiro governo tive decepções. Veio o segundo mandato e as coisas melhoraram para a nossa classe. Melhor ainda, camarada, subimos de classe. O poder aquisitivo melhorou, passamos a consumir mais. Hoje tenho filha na faculdade, adquiri computador, TV 42 LG, geladeira dúplex, é mole? E até Play 3”.
O escritório é a conquista mais significativa da família, para além das necessidades básicas e do consumo de eletrodomésticos e eletrônicos. Hustene chorou quando ficou pronto. É lá que está o computador conectado 24 horas à internet. Estela busca receitas de cozinha, Hustene procura o noticiário, Jade estuda para o vestibular, todos usam e-mails. Até a neta Gabriely, de 10 anos, participa de redes sociais. É também lá que está o aparelho de som no qual Hustene ouve sua nova coleção de CDs de Chico Buarque. Lá estão também escritores como Dan Brown e best-sellers como A cabana e O vendedor de sonhos. Antes, todos ficavam na cozinha com Estela. Agora se dividem pela sala, pelo escritório e pelo terraço concluído. É nesse amplo terraço, pavimentado com lajotas nas cores do Corinthians, que Hustene faz questão de aparecer.
O aumento da renda da família no governo Lula foi determinado pelo crescimento do salário mínimo e pela mudança na qualidade do emprego – de bicos no mercado informal ao registro na carteira. Diego e Rodrigo já não dependem do SUS. Têm plano privado de saúde como benefício das empresas onde trabalham. Diego, de 23 anos, acaba de ser promovido a chefe de estoque de uma multinacional. Trancou duas vezes a faculdade – a primeira, por falta de dinheiro para pagar a mensalidade; a segunda, por causa do horário do trabalho. Em 2011, a empresa vai pagar curso de inglês aos sábados para que ele possa fazer um estágio nos Estados Unidos. Sempre que sobra algum dinheiro, Diego investe em literatura. Quando o conheci, era um menino de olhos tristes que descarregava caminhões para ajudar a família e sonhava em ser arqueólogo. Diego ainda sonha.
Rodrigo, de 28 anos, conseguiu em dezembro um posto de mecânico numa grande concessionária de automóveis. É a primeira vez que trabalha numa empresa com benefícios. Jade, de 18, deixou o emprego de balconista numa loja para estudar para o vestibular de fisioterapia. Hustene e Estela concluíram que valia mais a pena para ela se concentrar nos estudos neste momento – um luxo impensável até bem poucos anos atrás. “Hoje”, diz Jade, “eu tenho até tênis Nike.” Gabriely, filha de Rodrigo com uma ex-namorada, é criada pela família. Nas proximidades do Natal, pedia à avó que comprasse uma caixa de bombons para o “amigo de chocolate” na escola pública onde estuda. Nenhum drama. Havia dinheiro para os bombons.
Em 2011, Amanda se tornará a primeira Costa Pereira da história, pela linhagem da mãe e pela do pai, a se formar na universidade. Aos 26 anos, tem sua própria família e renda. Ela apenas estuda. É seu marido quem paga curso superior para ambos com o salário de dois trabalhos. A filha Rafaela, de 5 anos, também estuda em escola particular. O marido de Amanda quer se formar para fazer concurso público. Ela será enfermeira. A nova família tem plano de saúde privado, um carro e uma moto e acaba de pegar as chaves do apartamento próprio. “Antes eu não tinha planos nem sonhos. Queria simplesmente ter um emprego e ajudar em casa”, diz Amanda. “Hoje tenho os melhores sonhos para minha família, como dar uma boa educação para a minha filha.”
Com exceção de Rodrigo, que parou de estudar no ensino fundamental, todos os filhos superaram Hustene em anos de estudo. Ele segue, porém, como referência da família. Apesar de ter ficado menos tempo na escola, recebeu um ensino de mais qualidade. É ele quem escreve melhor. Ao fiscalizar as tarefas escolares da neta, fica triste com a baixa qualidade do ensino público. Sofre também ao pensar que nenhum dos filhos chegará às melhores universidades de São Paulo. “Elas são para quem estudou em colégio particular, para os mais ricos”, diz. Mesmo assim, quando Hustene conta que Amanda está na universidade – e ele não perde nenhuma oportunidade de tocar no assunto na vizinhança –, fica parecido com um chéster de tanto estufar o peito. Adora pronunciar a mesma frase: “Minha filha está na universidade”. Gosta de tudo, até do som das palavras.
A família não identifica a melhoria das condições de vida com o governo Fernando Henrique Cardoso. Mesmo que a estabilidade econômica tenha sido concretizada nos dois mandatos de FHC, assim como as bases para o que veio depois, toda a transformação é atribuída a Lula. Nos dois mandatos de FHC a situação era difícil, no primeiro mandato de Lula também, no segundo a vida mudou para melhor. Mais, inclusive, do que pensaram que poderia mudar. Hustene não perdoa uma coisa em particular: no governo de FHC se afirmava que “o Brasil quebraria se tivesse um aumento de salário mínimo”. A família Costa Pereira gosta de olhar as fotos no painel da sala em que todos estão bem magrinhos. “Olha nós no governo FHC.” Hoje, engordaram. “Até a Pantera”, dizem. A cadelinha vira-lata come ração e bife.
Quando assistia ao noticiário em que Lula aparecia no exterior, com outros chefes de Estado, com reis e rainhas, Hustene chorava diante da TV. Perguntei a ele por que, se todos os presidentes anteriores também foram recebidos nas cortes. Com olhos de garoa, Hustene Pereira afirmou: “Mas não era eu. Agora, sou eu que estou lá”. Mesmo que em Dilma Rousseff ele “confie desconfiando”, Hustene acredita que, de alguma forma, ainda estará lá.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Hildegard Angel e dona Marisa Letícia (do Advivo, de Luis Nassif)

Marisa Letícia, italiana, cara de nordestina, feliz com o botox


Hildegard Angel, inteirona aos 61




-









Danuza: a teoria na "plástica" não funciona










Hildegard Angel honra a memória da mãe e do irmão com um texto finíssimo sobre Marisa Letícia, a primeira dama de São Bernardo.

Da mesma forma, um comentário no mesmo blog (de Antônio CDS) acerta também na mosca, mandando pra escanteio outra mulher que vem fazendo o contrário: desonrando a memória da irmã e do pai.

Vejam:

"Nem deixou escapar uma ponta de maldade na referência à estética:

Enquanto Dona Marisa melhorou, aquela que fez a crítica às festas juninas, outrora desejável mulher, hoje se tornou um frankenstein deformado por cirurgias plásticas."

Referência clara à canastrona das pontas dos filmes de Gláuber Rocha - uma tal Danuza.

Para as gerações mais novas dispensarem a ida ao Google, esclareço:

- o irmão da Hilde foi o Stuart, morto pela ditadura, cujo corpo nunca apareceu; a mãe foi a Zuzu, a guerreira estilista que lutou até morrer e não conseguiu enterrar seu filho - uma heroína de tragédia grega da cabeça aos sapatos

- a outra, hoje um zumbi que dá os braços ao diogo mainardi, é irmã da Nara (precisa apresentação?) e filha do Jairo Leão, que era amigo do Manuel Bandeira e outros.

(Carlos Moura)

______________________________________________________________


OS ATAQUES IMPLACÁVEIS A MARISA LETÍCIA

Por Hildegard Angel

Foram oito anos de bombardeio intenso, tiroteio de deboches, ofensas de todo jeito, ridicularia, referências mordazes, críticas cruéis, calúnias até. E sem o conforto das contrapartidas. Jamais foi chamada de "a Cara" por ninguém, nem teve a imprensa internacional a lhe tecer elogios, muito menos admiradores políticos e partidários fizeram sua defesa. À "companheira" número 1 da República, muito osso, afagos poucos.

dirão os de sempre, e as mordomias? As facilidades? O vidão? E eu rebaterei: E o fim da privacidade? A imprensa sempre de olho, botando lente de aumento pra encontrar defeito? E as hostilidades públicas? E as desfeitas? E a maneira desrespeitosa com que foi constantemente tratada, sem a menor cerimônia, por grande parte da mídia? Arremedando-a, desfeiteando-a, diminuindo-a? E as frequentes provas de desconfiança, daqui e dali? E - pior de tudo - os boatos infundados e maldosos, com o fim exclusivo e único de desagregar o casal, a família?

Ah, meus queridos, Marisa Letícia Lula da Silva precisou ter coragem e estômago para suportar esses oito anos de maledicências e ataques. E ela teve.

Começaram criticando-a por estar sempre ao lado do marido nas solenidades. Como se acompanhar o parceiro não fosse o papel tradicional da mulher mãe de família em nossa sociedade.

Depois, implicaram com o silêncio dela, a "mudez", a maneira quieta de ser. Na verdade, uma prova mais do que evidente de sua sabedoria. Falar o quê, quando, todos sabem, primeira-dama não é cargo, não é emprego, não é profissão?

Ah, mas tudo que "eles" queriam era ver dona Marisa Letícia se atrapalhar com as palavras para, mais uma vez, com aquela crueldade venenosa que lhes é peculiar, compará-la à antecessora, Ruth Cardoso, com seu colar pomposo de doutorados e mestrados.

Agora, me digam, quantas mulheres neste grande e pujante país podem se vangloriar de ter um doutorado? Assim como, por outro lado, não são tantas as mulheres no Brasil que conseguem manter em harmonia uma família discreta e reservada, como tem Marisa Letícia.

E não são também em grande número aquelas que contam, durante e depois de tantos anos de casamento, com o respeito implícito e explícito do marido, as boas ausências sempre feitas por Luís Inácio Lula da Silva a ela, o carinho frequentemente manifestado por ele. E isso não é um mérito? Não é um exemplo bom?

Passemos agora às desfeitas ao que, no entanto, eu considero o mérito mais relevante de nossa ex-primeira-dama: a brasilidade.

Foi um apedrejamento sem trégua, quando Marisa Letícia, ao lado do marido presidente, decidiu abrir a Granja do Torto para as festas juninas. A mais singela de nossas festas populares, aquela com Brasil nas veias, celebrando os santos de nossas preferências, nossa culinária, os jogos e brincadeiras. Prestigiando o povo brasileiro no que tem de melhor: a simplicidade sábia dos Jecas Tatus, a convivência fraterna, o riso solto, a ingenuidade bonita da vida rural. Fizeram chacota por Lula colar bandeirinhas com dona Marisa, como se a cumplicidade do casal lhes causasse desconforto.

Imprensa colonizada e tola, metida a chique. Fazem lembrar "emergentes" metidos a sebo que jamais poderiam entender a beleza de um pau de sebo "arrodeado" de fitinhas coloridas. Jornalistas mais criteriosos saberiam que a devoção de Marisa pelo Santo Antônio, levado pelo presidente em estandarte nas procissões, não é aprendida, nem inventada. É legitimidade pura. Filha de um Antônio (Antônio João Casa), de família de agricultores italianos imigrantes, lombardos lá de Bérgamo, Marisa até os cinco de idade viveu num sítio com os dez irmãos, onde o avô paterno, Giovanni Casa, devotíssimo, construiu uma capela de Santo Antônio. Até hoje ela existe, está lá pra quem quiser conferir, no bairro que leva o nome da família de Marisa, Bairro dos Casa, onde antes foi o sítio de suas raízes, na periferia de São Bernardo do Campo. Os Casa, de Marisa Letícia, meus amores, foram tão imigrantes quanto os Matarazzo e outros tantos, que ajudaram a construir o Brasil.

Outro traço brasileiro dela, que acho lindo, é o prestígio às cores nacionais, sempre reverenciadas em suas roupas no Dia da Pátria. Obras de costureiros nossos, nomes brasileiros, sem os abstracionismos fashion de quem gosta de copiar a moda estrangeira. Eram os coletes de crochê, os bordados artesanais, as rendas nossas de cada dia. Isso sim é ser chique, o resto é conversa fiada.

No poder, ao lado do marido, ela claramente se empenhou em fazer bonito nas viagens, nas visitas oficiais, nas cerimônias protocolares. Qualquer olhar atento percebe que, a partir do momento em que se vestir bem passou a ser uma preocupação, Marisa Letícia evoluiu a cada dia, refinou-se, depurou o gosto, dando um olé geral em sua última aparição como primeira-dama do Brasil, na cerimônia de sábado passado, no Palácio do Planalto, quando, desculpem-me as demais, era seguramente a presença feminina mais elegante. Evoluiu no corte do cabelo, no penteado, na maquiagem e, até, nos tão criticados reparos estéticos, que a fizeram mais jovem e bonita.

Atire a primeira pedra a mulher que, em posição de grande visibilidade, não fez uma plástica, não deu uma puxadinha leve, não aplicou uma injeçãozinha básica de botox, mesmo que light, ou não recorreu aos cremes noturnos. Ora essa, façam-me o favor! Cobraram de Marisa Letícia um "trabalho social nacional", um projeto amplo nos moldes do Comunidade Solidária de Ruth Cardoso. Pura malícia de quem queria vê-la cair na armadilha e se enrascar numa das mais difíceis, delicadas e técnicas esferas de atuação: a área social.

Inteligente, Marisa Letícia dedicou-se ao que ela sempre melhor soube fazer: ser esteio do marido, ser seu regaço, seu sossego. Escutá-lo e, se necessário, opinar. Transmitir-lhe confiança e firmeza. E isso, segundo declarações dadas por ele, ela sempre fez. Foi quem saiu às ruas em passeata, mobilizando centenas de mulheres, quando os maridos delas, sindicalistas, estavam na prisão. Foi quem costurou a primeira bandeira do PT. E, corajosa, arriscou a pele, franqueando sua casa às reuniões dos metalúrgicos, quando a ditadura proibiu os sindicatos. Foi companheira, foi amiga e leal ao marido o tempo todo.

Foi amável e cordial com todos que dela se aproximaram. Não há um único relato de episódio de arrogância ou desfeita feita por ela a alguém, como primeira-dama do país. A dona de casa que cuida do jardim, planta horta, se preocupa com a dieta do maridão e protege a família formou e forma, com Lula, um verdadeiro casal. Daqueles que, infelizmente, cada vez mais escasseiam. Este é o meu reconhecimento ao papel muito bem desempenhado por Marisa Letícia Lula da Silva nesses oito anos.

Tivesse dito tudo isso antes, eu seria chamada de bajuladora. Esperei-a deixar o poder para lhe fazer a Justiça que merece.




segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O Edgard e a Casa da Rua Alferes

Enviado por: Vanderlei Pequeno

O prefeito de Cataguases, em entrevista a uma emissora de rádio, disse que preferiu comprar o Edgard Cine-teatro, em vez de adquirir a Casa da Rua Alferes.  Alegou ter tomado essa decisão por julgar o cinema mais importante para o município. Mero exercício de retórica e que carece de fundamento.

O cinema foi projetado pelos arquitetos Aldary Toledo e Carlos Leão na metade do século passado (1953). O prédio é constituído pelo Edgard Cine-Teatro, no térreo, Secretaria de Cultura, pavimento superior e lojas subterrâneas. Foi tombado pelo Iphan – Instituto do Patrimônio Artístico Nacional por conta de suas características modernistas. Sem dúvida, trata-se de uma arrojada construção. Oferece acomodação para 980 pessoas, sem contar o “balcão”, atualmente desativado; possui um belo e amplo palco, camarins e bastidores.

Já a Casa da Rua Alferes, embora não tenha merecido maior atenção e estudos do Iphan, provavelmente, teve sua construção iniciada ainda no final do século XIX. Foi a terceira residência da zona urbana do município.  O imóvel, agora em “terra nua”, fica no número 130 da Rua Alferes Henrique José de Azevedo. Pertence aos herdeiros do senhor Antônio Januário Carneiro, antigo, serventuário da Justiça. Os que ali moravam davam ênfase às características históricas da construção, hoje demolida: alicerce (ou base), construído com a sobreposição de grandes pedras, provavelmente com mãos escravas; telhado em estilo colonial; pé-direito elevado; muitos cômodos, todos janelados, não faltando os destinados às visitas; varanda com acessos laterais; cozinha com fogão a lenha e quintal com fruteiras produzindo em profusão. Tudo reproduzia ali a estética da época dos que escapavam à realidade de uma vida mais simples, sem maiores fortunas.

Até meados do ano, a Casa da Rua Alferes foi objeto de desapropriação pública, processo iniciado ainda no governo Tarcísio Henriques. Num de seus últimos despachos, em meados de 2010, a juíza concedeu sua posse ao município, mediante depósito judicial de seis parcelas de R$ 40.200,00. A prefeitura, em petição, renunciou a esse direito alegando falta de recursos. O processo foi encerrado e é fato consumado que nosso prefeito deixou de comprar por R$ 240 mil, em seis vezes, um imóvel que, hoje, já deve ter sido negociado na iniciativa privada por R$ 750 mil. É preciso deixar registrado também que o Superintendente do IPHAN Minas, senhor Leonardo Barreto, esteve no imóvel e comprometeu-se a buscar recursos federais para a sua restauração, caso o município efetivasse a sua compra e o repassasse para o Governo Federal. O instituto tinha a intenção de abrigar ali o seu escritório de representação, uma reivindicação antiga do Conselho de Engenharia de Cataguases.  
         
O Cine - Edgard também entrou em processo de desapropriação no mês passado. Ainda não foi adquirido, como anunciado. O Decreto foi publicado quando a proprietária, residente na cidade de Ubá- MG, pegando a onda da divulgação de uma infundada nota do jornalista Anselmo Góis no O Globo, encaminhou ofício à prefeitura, comunicando não ter interesse de manter o contrato de locação com o município. A senha de que pretendia vender o imóvel estava dada e a Procuradoria corretamente, decretou a sua desapropriação.

Não há dúvidas de que o valor pecuniário do Edgard Cine-Teatro, a ser atribuído pela justiça para conceder a sua posse provisória ao município, será bem maior que o estabelecido para a aquisição da Casa da Rua Alferes. Nosso prefeito, o mesmo que abriu mão de comprar um imóvel por R$ 240 mil, em seis parcelas alegando não ter dinheiro, espero, já deve ter merecido do governador de Minas, Antônio Anastasia, um compromisso de aporte desses recursos para fazer frente à demanda da compra do cinema. Caso contrário, estaremos convivendo com mais um blefe público e o processo de desapropriação do Edgard Cine-Teatro seguirá o destino dado ao da Casa da Rua Alferes: será encerrado e o prédio poderá também ficar sob os desígnios da iniciativa privada e sua lógica arrecadadora. Minha esperança é de que o governador tucano, vencido nas urnas em nossa cidade, já tenha “digerido o sapo“ e agora esteja pensando em aqui investir, como estratégia de conseguir reconhecimento político e votos no futuro. Será?